Em Desconstrução http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente Wed, 28 Aug 2019 12:36:26 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Procuradores da Lava Jato são sintoma de sociedade doente http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/2019/08/27/procuradores-da-lava-jato-sao-sintoma-de-sociedade-doente/ http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/2019/08/27/procuradores-da-lava-jato-sao-sintoma-de-sociedade-doente/#respond Tue, 27 Aug 2019 19:01:41 +0000 http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/?p=638

(Crédito: Tomaz Silva/ Agência Brasil)

“O safado só queria passear.”

O autor da frase é Januário Paludo, procurador da Lava Jato, em conversa obtida pelo site The Intercept e analisada em conjunto com o UOL

O safado, como se sabe, é Lula. 

E o passeio em questão é o enterro de Vavá, irmão do ex-presidente. 

A quem sobra um pouco de empatia –a capacidade de se identificar com outra pessoa, especialmente com sua dor–, a frase soa tão repulsiva que convida a uma segunda, terceira, quarta leitura. É isso mesmo? Alguém de fato pode enxergar no funeral de um parente próximo motivo de diversão? Por mais que se odeie Lula, é cabível imaginar o ex-presidente recebendo na cela a notícia da morte do irmão e, com um sorriso discreto, pensar: “Oba, pelo menos vou dar uma passeada?”

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Parece que é assim que pensam Januário e seus colegas de Lava Jato. Entre 2017 e 2019, o ex-presidente perdeu a esposa, um irmão e um neto de 7 anos. As mortes mereceram comentários dos integrantes da força tarefa: Deltan Dallagnol chama Marisa Letícia de “vegetal”; Januário Paludo desconfia do AVC da ex-primeira dama (“Estão eliminando as testemunhas”, “não me cheirou bem”); Laura Tessler diz que a morte da esposa de Lula será “sessão de vitimização”; Depois, relaciona o AVC a “humilhantes puladas de cerca” do ex-presidente; Jerusa Viecili faz troça do funeral (“Querem que eu fique para o enterro?”); Antônio Carlos Welter diz que a morte de Marisa “liberou ele [Lula] para a gandaia”; Jerusa Viecili comenta assim a morte do menino Arthur: “Preparem para nova novela ida ao velório”; Athayde Ribeiro Costa, que a respeito de Vavá sugeriu “leva o morto lá na PF”, desta vez apenas lamentou o falecimento do menino ter sido “no meio do carnaval”.

A conduta dos procuradores ecoa a pergunta que nossos filhos e netos farão, daqui a algumas décadas, sobre o momento do Brasil de hoje: Como pudemos chegar a esse ponto?

Negar a humanidade ao adversário

Quando ocorre a morte de um ente querido, há uma regra social tácita: suspendem-se as críticas em respeito a quem sofre, ainda que se odeie o morto ou o parente em questão. Mesmo que as ironias não tenham sido feitas em público, elas chocam pelo grau de degradação. Se já seriam graves para qualquer pessoa que se pretenda civilizada –no espectro oposto, equivaleria a torcer pela morte de Bolsonaro com a facada–, são inadmissíveis quando se trata de procuradores da República. 

Esses devem observar o princípio da impessoalidade em seu trabalho, que basicamente é garantir que se obedeça à legislação vigente. A esse respeito, é tragicômico recuperar a frase de Orlando Martello na mesma série de vazamentos. Reconhecendo que é um direito de Lula ir ao velório do irmão Vavá (todo preso em regime fechado tem esse direito), Martello se opõe à saída por conta do perigo “caso insistam em fazer cumprir a lei”.

Os diálogos obtidos pelo Intercept deixam pouca dúvida de que a Lava Jato, ao menos em relação a Lula, se comportou como partido político, tendo o então juiz Sérgio Moro como seu chefe. Os vazamentos recentes desenham contornos mais nítidos ao grau de virulência e ódio que pautou suas ações. Vistos pelo prisma da psicologia, os diálogos ironizando o luto do ex-presidente são preocupantes. Dado o grau de insensibilidade, é razoável supor que Deltan e companhia operem pela chave da desumanização. 

Trata-se de um processo, consciente ou não, de negação da humanidade aos outros. Como decorrência, os “não humanos” não teriam os mesmos direitos dos humanos, podendo por isso serem punidos com crueldade e, no limite, exterminados. 

Há farta pesquisa mostrando como a desumanização está na raiz de desastres como a escravidão e genocídios. A transformação de adversários em inimigos –às vezes, inimigos de morte–, alimenta-se do mesmo mecanismo. Os colegas procuradores mostraram que Paludo não está sozinho em sua visão desumanizada. E uma fatia da população, delirante quando o ocupante da presidência sugere mandar opositores para a “ponta da praia”, mostra que a Lava Jato é apenas um sintoma da nossa sociedade –que não cansa de dar mostras de seu adoecimento.

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Para professoras, alfabetização do MEC ignora realidade das aulas http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/2019/08/23/para-professoras-alfabetizacao-do-mec-ignora-realidade-das-aulas/ http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/2019/08/23/para-professoras-alfabetizacao-do-mec-ignora-realidade-das-aulas/#respond Fri, 23 Aug 2019 07:00:54 +0000 http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/?p=631

(Crédito: Ned Horton/Freeimages)

O que é preciso para ter um trabalho de alfabetização bem feito?

Um slide da professora Ticiane Maria de Souza Silva, da rede municipal de Sobral (CE), enumera alguns ingredientes: foco nos objetivos, estratégias lúdicas e inovadoras, compromisso, formação, planejamento, rotina, gestão de sala, nenhum aluno a menos, estímulo, atividades no contraturno a partir do 1º ano e equilíbrio entre autonomia e acompanhamento.

A lista é grande, mas você percebeu que não há nenhuma menção à “método de alfabetização”? Guarde essa informação. Voltaremos a ela depois.

Ticiane não é uma professora qualquer. Sobral não é uma rede qualquer. A educadora, especialista em gestão escolar e em educação infantil, atualmente é diretora e faz parte do grupo que desenvolve a proposta pedagógica de creches e pré-escolas do município com as melhores notas nas avaliações de aprendizagem do Brasil. No 3º Congresso Internacional de Jornalismo de Educação, realizado no começo da semana em São Paulo, Ticiane protagonizou uma mesa sobre alfabetização na prática. A seu lado, outra professora de destaque, de uma rede de destaque: Mirlene Barcelos, envolvida com alfabetização há quase três décadas em Lagoa Santa (MG), outro município que costuma se sair muito bem quando o assunto são as avaliações do Ensino Fundamental.

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Nem Ticiane nem Mirlene nem outras professoras do chamado “chão da escola” foram ouvidas pelo Ministério da Educação para a construção do caderno que detalha a nova política de alfabetização, recém-lançada pelo MEC. Como registrou o repórter Paulo Saldaña, da Folha de S. Paulo, a apresentação do documento se deu sem a presença dos secretários municipais –que são quem, de fato, zela pela implementação dos programas.

O uso maldoso da ideia de “evidência científica”

Talvez por isso boa parte do caderno se dedique à defesa de um aspecto que as educadoras não elencam como prioritário. Sob variadas denominações, apresenta-se um método de alfabetização –o fônico, que se foca na relação entre letras e sons– como aquele que, segundo “evidências de pesquisas”, daria os melhores resultados na avaliação.

A discussão pode soar estranha para quem não é da área. Um pouco de contexto: há algumas décadas, as políticas de alfabetização no Brasil oscilavam entre diferentes metodologias que, de modo geral, punham foco ou na já citada relação grafema-fonema, ou na compreensão global de palavras e textos, respeitando a progressão das hipóteses de pensamento das crianças, como forma de ensinar a ler e a escrever. Hoje se sabe que tudo isso é fundamental.

Pois o MEC ressuscita essa briga de maneira –para a surpresa de ninguém– maldosa, utilizando o termo “evidência científica” de maneira abusiva. Diga-se de passagem, trata-se de estratégia recorrente de certos atores da educação: apresentam-se estatísticas, comparações, melhores relação de custo-benefício de uma solução em relação à outra como sendo a prova irrefutável, cabal, “evidente”, da opção selecionada.

Ocorre que todo número e toda pesquisa podem ser problematizados. E que, muitas vezes, estudos podem chegar a “evidências” contrárias simplesmente por seguirem metodologias diferentes. No caso do uso abusivo do termo, o pulo do gato está em ignorar as contraevidências, apresentando-as como coisa de gente “irracional”, “dogmática”, “ideológica”, “resistente às mudanças”. 

Como dissemos, essa “edição da realidade” é comum nos “estudos guiados por evidências”. Mas ao menos em um aspecto o MEC inovou: as 56 páginas do documento fazem 46 menções à ideia de evidências científicas sem que se apresente uma única comparação, estatística ou relação de custo-benefício entre métodos –portanto, nenhuma “evidência” da superioridade do que o caderno chama de práticas da ciência cognitiva da leitura. 

A opção pela vingança

A impressão que se tem é que o documento tenta convencer convocando à fala especialistas que defendam o método fônico –exclusivamente eles– e repetindo “evidências”, “evidências”, “evidências” como um mantra para emplacar um engodo. Em artigo recente na Folha de S. Paulo, Beatriz Cardoso e Alexsandro Santos vão na mesma linha de crítica, de uma maneira até mais contundente: chamam de falácia a afirmação do MEC de que o método fônico seria a única solução baseada em evidências. “As evidências científicas em torno de propostas construtivistas também são abundantes e robustas”, escrevem.

Voltemos à sala de aula. Mais recentemente, as políticas públicas têm passado ao largo da “guerra dos métodos” e optado por um ecletismo metodológico. A opção não é isenta de críticas, mas parece espelhar melhor o que concretamente ocorre nas escolas brasileiras. “Método não é a principal discussão para a garantia da alfabetização”, afirma Ticiane. “Não dá para dizer ‘vou usar apenas um método’. O que se almeja é que as crianças se alfabetizem de alguma forma e, nesse caminho, pode ser necessário lançar mão de muitas estratégias”.

Sobre o caderno do MEC, a educadora questiona: “Será que estamos começando pelo caminho certo ao ter um caderno dizendo que tem de tratar do método? Seria melhor focar no que é essencial: formação, decisão em rede, investimento”. Mirlene, por sua vez, aponta a falta de diálogo da proposta: “Não é impondo políticas que vamos conseguir resultados melhores. O que vem dessa forma, de cima para baixo, não engaja os professores nem gera aprendizagem”. 

Vale para a alfabetização e muitas outras ações: o autoritarismo tem sido a tônica da atual gestão do MEC. Em vez de aprimorar o que é realmente necessário –planejamento, formação, avaliação, salário e infraestrutura–, Weintraub e trupe administram por vingança. Enxergando inimigos em toda parte (alunos, professores, reitores, Paulo Freire, “construtivistas”, “comunistas”, livros didáticos), requentam polêmicas e fogem do essencial — por não saberem o que fazer, por não verem serventia em estabelecer qualquer política digna do nome. O primeiro ponto parece evidente, mas segundo também faz sentido: num governo cujo único projeto é a destruição, todas as pastas devem trabalhar para sua própria implosão. Más notícias para quem tem esperança em um futuro melhor. A Educação, infelizmente, é um dos exemplos mais acabados de antiministério.

 

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Protestos ocorrem porque MEC virou ministério da guerra http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/2019/08/13/protestos-ocorrem-porque-mec-virou-ministerio-da-guerra/ http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/2019/08/13/protestos-ocorrem-porque-mec-virou-ministerio-da-guerra/#respond Tue, 13 Aug 2019 18:12:08 +0000 http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/?p=621

(Crédito: Pedro Ladeira/Folhapress)

O Brasil tem 48 milhões de estudantes, mais de 2 milhões de professores e 200 mil gestores escolares. Sem essas pessoas, não existe educação. Ainda assim, o ministro Abraham Weintraub considera possível gerir o MEC chamando sistematicamente essa multidão para o confronto. Os protestos de hoje — terceira onda de um movimento surgido há apenas quatro meses — têm a ver com a postura de guerra adotada pela pasta desde abril.

O bestiário se avoluma: numa só tacada, Weintraub ofendeu professores e estudantes ao criticar a “balbúrdia” universitária; perseguiu reitora cuja instituição teve a luz cortada; fez conta (errada) com chocolatinhos para explicar contingenciamento (até agora, corte) de verbas no ensino superior; estrelou striptease para mostrar ferimentos que justificariam notas baixas na graduação; confundiu Kafka com kafta; zombou de parlamentares durante sabatina; divulgou telefone de deputada opositora, que passou a sofrer ataques de bolsonaristas; disse que a avaliação de alfabetização custaria R$ 500 mil quando o correto seria R$ 500 milhões; questionou a autonomia universitária prevista na Constituição; pediu para alunos gravarem professores supostamente doutrinadores; ordenou a edição de seu perfil na Wikipedia — negado, pediu sua exclusão; chamou mural de Paulo Freire de “feio de doer” e sugeriu sua retirada; num campo ultrapolarizado, fez piada com a apreensão de cocaína em avião presidencial ao comparar o peso da droga com o de ex-presidentes; fez Gene Kelly se revirar no túmulo com paródia canhestra de Cantando na Chuva.

Tudo isso vindo de um ministro que assumiu com a proposta de “acalmar os ânimos”.

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No plano administrativo, sua gestão tem sido marcada por cortes e pouca transparência. O talho mais midiático, no ensino superior, tem dimensão desconhecida: o MEC fala em 30% das despesas discricionárias, mas há instituições reclamando de uma tungada de 54%. O ProUni integral e presencial diminuiu, bolsas de pesquisa na pós-graduação foram cortadas ou não renovadas. A promessa de que a educação básica não seria afetada pelo aperto revelou-se mentirosa: livros didáticos perderam R$ 348 milhões; a construção de creches foi asfixiada; o fomento ao ensino integral e à alfabetização pelo Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) teve até julho investimento total de zero reais. Por outro lado, a pasta foi generosa ao ceder R$ 1 bilhão ao esforço de incentivar deputados a votarem “sim” para a reforma da previdência.

Propostas? Concretamente, apenas duas. Na educação básica, a oferta de militarizar cerca de 100 escolas. No ensino superior, o Future-se, projeto que modifica o financiamento de instituições federais de ensino superior e que vem sendo encarado pela comunidade universitária como vago e pouco transparente, ampliador de desigualdades, estratégia privatista, aposta em recursos incertos e sem liquidez. Um diagnóstico duríssimo, mas daria para esperar outra classificação de um documento redigido a portas fechadas, de costas para reitores, associações de classe, estudantis e de pesquisa, sindicatos e outros agentes do campo educacional?

Enquanto isso, dormitam em alguma gaveta políticas mais ambiciosas e construídas coletivamente, como o Plano Nacional da Educação. Ficam em segundo, terceiro ou quarto plano o combate ao analfabetismo, à evasão escolar e à distorção idade-série, a expansão da educação infantil e do ensino superior público, a discussão sobre os currículos de licenciaturas e da pedagogia, o aprimoramento da inclusão de crianças e jovens com deficiência, os programas de formação continuada de professores e a valorização do magistério via plano de carreira e recuperação salarial.

A combinação de ofensa, bolso vazio e falta de diálogo não poderia dar em outra coisa: rechaço maciço às propostas do MEC. Entre os elementos que compõem o processo pedagógico — alunos, professores e os objetos de ensino –, o ministro realizou a proeza de brigar com todos, inclusive com os inanimados: para aplacar a obsessão do clã Bolsonaro com uma suposta esquerdização do ensino, validou o trabalho de uma comissão que expurgou questões do Enem com pretenso “direcionamento ideológico”. 

A repetição dos protestos reforça a suspeita de que a gestão Weintraub, intencionalmente ou não, conduz a educação para uma situação do tipo “beco sem saída”. Sem horizonte para bandeira branca na Esplanada dos Ministérios, os sinais são de que a guerra está apenas começando.

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Ser pai ficou mais difícil — e precisa ficar ainda mais http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/2019/08/10/ser-pai-ficou-mais-dificil-e-precisa-ficar-ainda-mais/ http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/2019/08/10/ser-pai-ficou-mais-dificil-e-precisa-ficar-ainda-mais/#respond Sat, 10 Aug 2019 07:00:04 +0000 http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/?p=616

(Crédito: Jason Nelson/Freeimages)

Tenho duas filhas, Luiza de 4 anos, e Clara, de 1. Fui pai duas vezes e digo isso não apenas no sentido aritmético. Só três anos separam uma da outra — mas foram três anos e tanto! A paternidade evoluiu e não foi sem luta: respondeu a demandas sociais como os movimentos antiassédio, a quarta onda feminista e foi, também, impactada pela crise econômica. O resultado foram duas experiências concretas muito distintas sobre o que significa ser pai.

Em 2015, quando Luiza nasceu, era aceitável — um último suspiro de aceitação, na verdade — que um pai “presente” dissesse que “ajuda” em casa. O verbo traz implícito muita coisa complicada, a começar pela ideia de que criar um filho é tarefa feminina e que qualquer mãozinha que o macho der, se continuar cumprindo suas tarefas de provedor econômico, já está de ótimo tamanho. 

Vivenciei essa realidade com um emprego estável de 40 horas e uma licença-paternidade padrão de 5 dias. Me fazia presente lavando uma louça aqui e ali, intensificando (um pouco, não muito) as idas ao supermercado e farmácia e, muito ocasionalmente, acordando à noite para acudir a pequena. Mas não era bom abusar: afinal de contas, eu precisava estar inteiraço para trabalhar na manhã seguinte.

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O nascimento de Clara me colheu numa outra situação. No início de 2018, ainda estava empregado com carteira assinada, mas já contemplado com uma licença de 30 dias por liberalidade da empresa. Baita privilégio a mostrar que, ao menos dentro de uma bolha civilizada hipster de classe média alta, as coisas mudaram para melhor. E o que rolou com esse “presente” foi um choque de realidade: o afastamento por 4, 5, 6 meses das mulheres não é à toa. Fui apresentado a uma rotina de consultas médicas necessárias aos primeiros dias de vida, testes do pezinho, angústia com um resultado inconclusivo e, em seguida, o alívio por estar tudo bem. Coisas que aconteceram também no primeiro nascimento, mas que não estavam no meu radar simplesmente porque eu não estava ali quando esses perrengues rolaram.

Mudaram os ventos econômicos e, com eles, veio uma inversão de papéis: minha companheira passou a trabalhar 40 horas e eu, menos. Era minha vez de me dedicar mais ao cuidado das pequenas, o que revelou uma série de invisibilidades: lanche para a escola (as frutas não brotam na mochila), limpeza de pratinhos e mamadeiras depois da aula (sim, fica uma sujeirinha), água e sabão em blusas, calcinhas e macacões premiados com tinta, lama e cocô (inexplicavelmente, essas coisas não se autolavam).  

Mais suor, mas sem igualdade

Passei a suar mais. Mas a nota de rodapé, que talvez devesse ter força de título, é que minha esposa, mesmo trabalhando 40 horas, seguiu lidando com tarefas com as quais eu não me ocupava na sua posição. Isso tem um nome: privilégio, e não reconhecer que mesmo com uma maior igualdade em nossa relação ela ainda acaba levando — é duro e impreciso dizer isso em relação a filhos, mas vamos lá — “a pior” é fechar os olhos para o óbvio.

Pois bem: em 2019, somos muitos os pais mais inteiros com os filhos e, ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que essa integralidade ainda é de uma posição beneficiada. Em um certo sentido, a vida de pai ficou um pouco mais difícil. Não conte às mulheres (na verdade, pode contar), mas poderia e deveria ficar mais. É verdade que a definição de “homão da porra” foi atualizada de “macho que ajuda com qualquer coisa” para “companheiro que ajuda um pouco mais e sabe que ainda é pouco”. Mas a igualdade efetiva exige que tudo isso reverbere em mais ações práticas. 

É um pouco vergonhoso dizer que, para mim, essa ficha só caiu concretamente nestas férias, quase cinco anos depois do nascimento da Luiza. Vieram as férias de julho e, como a mãe estava trabalhando, viajamos, eu e as meninas, para um hotel. Não estávamos sozinhos (hello, privilégio!): tínhamos o luxuoso backup de meus sogros no quarto ao lado. Mesmo assim, assumi um protagonismo inédito, tendo que me preocupar com outras coisas ocultas: quantidade de fraldas, roupas que combinam, tipos diferentes de rabo de cavalo (tranças estão muito além de minhas capacidades psicomotoras), provisão de frutas, reaproveitamento de bodies, definição de rotinas para hora de dormir e de acordar, mediação incessante de conflitos entre irmãs… 

Uma extensa lista superfamiliar para a minha esposa, encarregada não de lidar — com isso eu “ajudava” –, mas de planejar toda essa complexa infraestrutura cotidiana para uma simples viagem com crianças. É a tal “carga mental” que as mulheres se queixam, com absoluta razão, de suportar sozinhas a maior parte do tempo.

Os tempos seguem mudando! Neste ano, me chamou a atenção a quantidade maior de pais do que mães participando da adaptação de seus filhos na escola (ok, vale dourado da Zona Oeste de SP, mas ainda assim). Como será meu relato de dia dos pais daqui a três anos? O mundo gira, apesar dos idiotas que querem fazê-lo rodar para trás.

*Atualizado em 11/08, às 9h50.

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O Brasil precisa e vai ser melhor que Bolsonaro http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/2019/08/03/o-brasil-precisa-e-vai-ser-melhor-que-bolsonaro/ http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/2019/08/03/o-brasil-precisa-e-vai-ser-melhor-que-bolsonaro/#respond Sat, 03 Aug 2019 07:00:11 +0000 http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/?p=607

(Crédito: Freeimages)

Em Melhor é Impossível, Jack Nicholson dá vida a um dos personagens mais irritantes da história do cinema. Racista, machista, antissemita e malcriado, seu Melvin Udall é um escritor de romances que sofre de transtorno obsessivo-compulsivo. Vive isolado e de mal com o mundo até que conhece a garçonete Carol Connelly (Helen Hunt), a única que suporta seu jeito abespinhado. 

Para ir ao ponto: Melvin se apaixona por Carol (é Hollywood, gente). Durante um jantar, ele comete uma de suas inúmeras grosserias e ela ameaça se mandar. A menos, diz Carol, que ele a impeça com um elogio. E o que Melvin diz, uma das frases mais citadas na história das comédias românticas, têm esse poder: “Você me faz querer ser um homem melhor”.

Há pessoas de que fato são assim. Inspiram o melhor em nós. Quando se tornam líderes, são capazes de influenciar virtuosamente coletividades mais amplas. Uma equipe de trabalho. Uma sala de alunos. Um país. Outros, ao contrário, despertam o que há de mais sórdido. Sentimentos e comportamentos negativos — como aqueles de Melvin Udall — que por boas razões permanecem sufocados num cantinho do inconsciente. São impróprios para o convívio social. Isso, claro, até que alguém levante o veto civilizatório e decrete que é aceitável, desejável até, sentir tais coisas, fazer tais coisas. Acabou a mamata, o mundo mudou e — como é que se dizia mesmo? — é melhor já ir se acostumando.

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Mesmo aos desavisados, seis meses bastaram para perceber que Bolsonaro pertence ao time daqueles que envenena tudo o que toca. Como nota Eliane Brum, é incapaz de uma gentileza ou de empatia por quem não pertença a seu clã ou lhe abane o rabo. Nos desperta o primitivo, o tosco e o beligerante. Estigmatiza, divide, ataca e, covarde que é, tem especial predileção por golpear os mais frágeis: indígenas, moradores de rua, LGBTs, mulheres, negros, ambientalistas, professores, dependentes químicos, artistas, pacifistas, pensadores, famélicos, nordestinos, mortos pela Ditadura, estrangeiros (a menos que sejam americanos) — a lista é longa e sempre crescente. Em resumo, Jair Bolsonaro é a anti-Helen Hunt: ele nos faz querer ser homens e mulheres piores. 

Paralisia, bolha, alienação

Diante do pesadelo, o que temos feito? Estamos paralisados em pânico, temos corrido para as montanhas seguras da alienação (“não me fale de política, só de Netflix”) ou para os santuários quentinhos das bolhas sociais. Nas arenas reais e virtuais, lastimamo-nos entre iguais sobre o ponto a que chegamos, reforçamos indignações com pessoas que pensam da mesma maneira, trocamos receitas de ansiolíticos e oportunidades de emprego no exterior. 

Podemos, precisamos e iremos ser melhores que Bolsonaro. Se a narrativa do homem cordial e do Brasil afável e acolhedor é um mito, também é uma meia verdade dizer que somos um país de corruptos e canalhas preconceituosos. Por outra: talvez sejamos as duas coisas e muito mais, dinamicamente, à espera do incentivo certo para desabrochar. Não foi assim, estimulado por uma “resposta” (violenta, falsa, obscurantista) diante da crise, que o bolsonarismo cresceu? 

Ele floresce na divisão. Apoia-se num equilíbrio precário, depende de um país rachado em três (bolsonaristas + direita/centro + esquerdas). Não é por outro motivo que sua entourage investe na guerra permanente contra inimigos cada vez mais numerosos. Para manter a base de apoio, as atrocidades precisam se ampliar em progressão geométrica. Junto com o engajamento, vem a radicalização: apoio à tortura e à matança, preconceitos variados, censura, elogio do trabalho infantil, devastação ambiental, antiintelectualismo. Ou seja: uma aposta no pior das pessoas.   

É hora do contraveneno.

Trocar os óculos de ver o mundo

É preciso lembrar que a maioria dos brasileiros não compra, nem nunca comprou, a necropolítica do capitão. Ocorre que essa maioria se encontra atomizada. São recentes as cicatrizes do impeachment, da divisão diante das sucessivas reformas, da prisão de Lula, da Lava Jato e da Vaza Jato, do apoio de Tabata à previdência… Não pretendo negar a importância de certas controvérsias. Mas parece cada vez mais claro que, diante do apocalipse que é Bolsonaro, tudo isso se rebaixa ao status de disputas de brinquedo no jardim da infância. 

Será que precisamos discutir a relação justo agora? Sério que vamos tirar no palitinho quem é o mais puro a essa altura do campeonato, tomando de 7 a 1?

A sugestão é olhar mais para o que nos une e menos para o que nos divide. 

Convocando novamente a Carol de Melhor é Impossível: há pessoas cujos traços realmente me enervam, mas é possível buscar o que há para admirar nelas. Coragem, bom humor, criatividade, alegria, resiliência, generosidade. Tudo isso é muito real e há de existir — ou viveríamos isolados pela incapacidade crônica de convívio mútuo. Talvez o ódio semeado em nossa história recente esteja nos impedindo de ver certas coisas. Se for assim, culpemos nossa miopia, não o mundo. E troquemos de óculos. 

De todas as características turvadas pela raiva e pela divisão, a mais importante de valorizar neste momento é a solidariedade. Trata-se do laço entre pessoas que sabem que sua sobrevivência depende da repartição de direitos e deveres. É o entendimento de que todos partilhamos um destino comum, e que não pode haver felicidade, desenvolvimento, sociedade, país — em resumo, vida — se não for para todos. Se cada um não contribuir pensando, a um só tempo, em si e nos outros. 

Tenho em mente os que não se entregaram à barbárie: não é ser excessivamente otimista dizer que todos compartilhamos essa crença. Só é preciso iluminá-la e reconhecer sua centralidade hoje. (Em alguma hora, também vamos precisar olhar para o tio bolsonarista e procurar enxergar o que de positivo existe nele. Mas isso pode ficar para um segunda etapa: há muita treta para resolver entre os semelhantes que ainda não desistiram da civilização).

O Brasil não é um horror. Ele está um horror. Há muito a fazer. Um país inteiro não pode ser, e não será, refém do que há de mais abjeto em si.

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Para especialistas, plano do MEC não resolve crise e ampliará desigualdades http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/2019/07/17/para-especialistas-future-se-nao-resolve-crise-e-aprofundara-desigualdades/ http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/2019/07/17/para-especialistas-future-se-nao-resolve-crise-e-aprofundara-desigualdades/#respond Wed, 17 Jul 2019 23:22:21 +0000 http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/?p=598

(Crédito: Luís Fortes/MEC)

Apresentado na manhã de quarta (17) pelo MEC, o Future-se é um plano que acena com modificações no financiamento de universidades federais. O blog consultou dois dos principais especialistas brasileiros no assunto: Marina Avelar, pesquisadora associada do grupo Norrag, do Graduate Institute of Internacional and Development Studies, na Suíça; e Salomão Ximenes, professor de políticas públicas da UFABC. A impressão inicial de ambos sobre o conjunto de medidas — em que se destacam a proposta de um fundo privado de financiamento, a gestão por organizações sociais e o estímulo ao empreendedorismo — é negativa. 

Para os entrevistados, o projeto é vago e pouco transparente; não resolve o problema imediato da falta de verba; acena com recursos incertos e sem liquidez; desresponsabiliza o poder público no financiamento do ensino superior público; joga na educação a responsabilidade pela solução de problemas econômicos; ameaça ampliar desigualdades entre universidades, cursos e áreas; e não contempla a expansão da rede.

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“Se fosse resumir, diria que o Future-se soa como uma tentativa de vender que se está melhorando o financiamento da educação, quando, na verdade, as universidades serão deixadas na mão”, afirma Marina. Ela se refere ao primeiro pilar da proposta: um fundo privado, no valor de R$ 102 bilhões, apresentado como fonte de recursos para as instituições públicas. A especialista aponta que os chamados mecanismos inovadores de financiamento precisam ser fontes adicionais de recurso, o que não é o caso. “Isso é consenso na literatura: financiamento inovador significa trazer dinheiro novo para novas iniciativas. Como o teto de gastos segue ativo e não houve menção ao fim do contingenciamento de verba, esse dinheiro seria usado para pagar o dia a dia. Na prática, ocorreria uma substituição do recurso público”, diz Marina, ressalvando que sua opinião não representa, necessariamente, a das instituições com que trabalha.

Outra dificuldade seria o tempo de uso do recurso. Segundo o MEC, boa parte do fundo — 50 dos 102 bilhões — viria da venda de terrenos e imóveis da União. Ou seja, não há liquidez. “Alem disso, um fundo tem tempo de maturação: é preciso primeiro capitalizar para depois retirar recursos. Essa é uma proposta que não vejo como consolidada”, afirma Salomão. Os dois especialistas concordam que não se trata de solução para o subfinanciamento atual. “Com o contingenciamento, o funcionamento das universidades está ameaçado desde agora. Elas precisam de dinheiro para eletricidade já. A proposta não mexe nisso”, diz Marina.

Uma segunda novidade é a possibilidade de que a gestão das universidades seja feita pelas chamadas organizações sociais (OS), entidades privadas sem fins lucrativos que recebem subvenção do governo para prestarem serviços. “O que está se propondo é um modelo misto de administração, coerente com um projeto neoliberal nascido ainda no governo FHC, nos anos 1990. A parcela que ficaria a cargo das OS não está clara. É preciso esclarecer o limite da atuação”, diz Salomão. Marina enxerga na medida uma modalidade de privatização. “A propriedade segue pública, mas a gestão ou a execução de serviços passa para a iniciativa privada”. A alegação de que o modelo traria mais eficiência é controversa. Salomão afirma que há poucas experiências no campo da educação — as parcerias público-privadas são mais comuns na cultura e na saúde. “São conhecidos os relatos de corrupção e improbidade administrativa em hospitais geridos por OS”, exemplifica Marina. “Também vejo problemas na questão da transparência: uma OS não precisa prestar contas como uma autarquia”. 

O terceiro ponto, pisado e repisado na apresentação do MEC, é o foco em inovação e empreendedorismo. Para Salomão, trata-se de uma uma proposta de liberalização geral para venda de serviços e força de trabalho intelectual. “Cria-se um conjunto de incentivos para que os docentes se dediquem muito mais a produzir para o mercado do que para o setor público. Isso preocupa pois muda completamente a dinâmica das universidades, da agenda de pesquisa e desenvolvimento e do tempo dedicado ao ensino, pesquisa e extensão. Vejo um desvirtuamento dos papéis de formação e de pesquisa de base.” Outro complicador é que, como nem todo o conhecimento é “vendável”, a tendência é de que se ampliem as desigualdades entre universidades, entre campos do saber e mesmo entre cursos. As áreas de humanas seriam as grandes atingidas. “Quem vai querer financiar estudo de desigualdade e racismo? É um tema bem coberto em literatura internacional: com PPPs, causas desse tipo perdem dinheiro”, diz Marina.

Os especialistas atacam, também, a ideia de que o ensino superior “rouba” dinheiro da educação básica. O mantra de que o problema não é recurso, mas gestão, apareceu na apresentação do MEC, mas é refutado pelas estatísticas educacionais: o gasto brasileiro por aluno no ensino superior é inferior à média dos países da OCDE, clube das nações desenvolvidas. 

Quando se pegam as instituições que teriam inspirado o Future-se, a disparidade aumenta. “MIT e Stanford investem cerca de 600 mil reais anuais em cada estudante. USP e Unicamp ficam na casa dos 53 mil. Mesmo que se considerem as diferenças no poder de compra, as diferenças são consideráveis”, aponta Marina. Para Salomão, é também equivocado tomar como exemplo instituições como Harvard — pequenas, em comparação com as maiores federais brasileiras. “Um exemplo melhor seria Berkeley, que é maior e tem o grosso de seu financiamento vindo do setor público. A experiência de países ricos mostra que apenas uma pequena fração das universidades consegue funcionar com modelos semelhantes ao proposto pelo MEC”. 

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“Filtro de idoso” apavora porque nos lembra que somos mortais http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/2019/07/17/filtro-de-idoso-apavora-porque-nos-lembra-que-somos-mortais/ http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/2019/07/17/filtro-de-idoso-apavora-porque-nos-lembra-que-somos-mortais/#respond Wed, 17 Jul 2019 07:00:50 +0000 http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/?p=590

No FaceApp, não foi bem assim. (Crédito: arquivo pessoal e divulgação)

A primeira impressão é de assombro. Serei assim quando velho? O tempo passa, mas eu imaginava um outro destino. Certa vez, uma amiga me garantiu que, na maturidade, eu teria a cara do Ricardo Darín. A profecia me trouxe paz de espírito. Mas, agora, segundo a tecnologia russa que raleia o cabelo, retira layers de colágeno e usa dados pessoais para sabe-se lá o quê, a bola de cristal da moça estava severamente furada.

O segundo olhar é mais resignado: aqueles idosos ali na imagem somos nós mesmos. A velhice está chegando e, para quem está na casa dos 40, a juventude ficou para trás. Prova disso é que o filtro oposto, “jovem”, faz um sentido incrível. De onde veio essa foto da adolescência que nem eu sabia que tinha?

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O curioso é que tanta gente tenha sentido a necessidade de compartilhar socialmente o resultado do envelhecimento artificial. E que apareçam as reclamações. Iniciada a onda viralizante, os conhecidos sommeliers de post alheio resolveram condenar a brincadeirinha inocente que, sejamos francos, não faz mal a ninguém. O mundo anda tão sofrido que um “parem de inundar minha timeline com fotos de velhos” soa totalmente fora de contexto. Vamos nos indignar com o que importa.

Desconfio que na reprimenda haja algo além da tradicional tendência da internet de polemizar sobre absolutamente tudo. A velhice incomoda porque, junto com o declínio corporal, vem a lembrança inescapável de que ela representa o fim da vida. As sociedades ocidentais lidam muito mal com a morte e o ato de morrer. No espetacular ensaio A Solidão dos Moribundos, o sociólogo alemão Norbert Elias identifica uma forte tendência, nas sociedades ditas “avançadas”, a tentar evitar a ideia de que a vida tem um fim. Afastamos esse pensamento de nós o tanto quanto possível – encobrindo-o, reprimindo-o ou assumindo uma crença inconsciente em nossa própria imortalidade. Os outros morrem, eu não.

Um dos efeitos desse processo é que, muitas vezes, a morte principia ainda em vida. Os idosos, parcela da população que mais nos lembra da finitude, muitas vezes são invisibilizados. Como escreve o sociólogo:

“A fragilidade dessas pessoas é muitas vezes suficiente para separar os que envelhecem dos vivos. Sua decadência as isola. (…) Isso é o mais difícil – o isolamento tácito dos velhos e dos moribundos da comunidade dos vivos, o gradual esfriamento de suas relações com pessoas a que eram afeiçoados, a separação em relação aos seres humanos em geral, tudo o que lhes dava sentido e segurança. Os anos de decadência são penosos não só para os que sofrem, mas também para os que são deixados sós”.

A solidão da morte em vida

Para Elias, a dificuldade de empatia dos “vivos” – provocação pertinente! – com os velhos é uma das fraquezas de nossas sociedades. “O problema social da morte é especialmente difícil de resolver porque os vivos acham difícil identificar-se com os moribundos”, completa. Trata-se de obstáculo exclusivo da raça humana. Entre todos os seres vivos, apenas nós sabemos que vamos morrer.

Talvez por isso o passatempo de se ver idoso ao alcance de um filtro de aplicativo provoque tanta curiosidade e, ao mesmo tempo, pavor e repulsa. De alguma forma, a representação de um futuro que não é belo (e não estou falando dos aspectos estéticos do envelhecimento) sepulta a crença na vida eterna. A tecnologia permite ver que um dia compartilharei a velhice e a morte com todo o resto da humanidade. A tecnologia projeta em mim traços familiares de um tio idoso, de um avó, de um pai. Mortos ou, ao menos, mais próximos da morte do que nós.

A tecnologia igualmente nos faz pensar no papel que desejamos na maturidade. Sabedoria reconhecida ou motivo de piada? Aposentadoria com alguma dignidade ou trabalhar até morrer? Proximidade de quem se ama ou isolamento? Qual, enfim, o significado de nossa presença na velhice? Volto a Elias:

“Nem sempre é fácil mostrar aos que estão para morrer que eles não perderam seu significado para os outros. Se isso acontece, se uma pessoa sentir quando está morrendo que, embora ainda viva, deixou de ter significado para os outros, essa pessoa está verdadeiramente só”.

Ao imaginar nosso futuro, podemos também pensar no papel e na atenção que destinamos aos nossos idosos. A conclusão muitas vezes pode nos envergonhar… No fim das contas, uma bobagem tecnológica que nos arremessa à terceira idade nos faz ver com outros olhos quem dela hoje faz parte.

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A sociedade ainda se desespera quando vê um pai sozinho com filhos http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/2019/07/13/a-sociedade-ainda-se-desespera-quando-ve-um-pai-sozinho-com-filhos/ http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/2019/07/13/a-sociedade-ainda-se-desespera-quando-ve-um-pai-sozinho-com-filhos/#respond Sat, 13 Jul 2019 07:00:54 +0000 http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/?p=583

(Crédito: Javier Zubiri/Freeimages)

Sim, ela estava chorando. Não, não é o comportamento esperado para um restaurante por quilo. Também não é nada demais: não é que um restaurante por quilo seja uma sala de concertos, nem que o choro da Clara fosse um falsete de um grupo de death metal.

Portanto, sociedade, lide com isso: reclamar com alguma estridência é basicamente o que uma criança de um ano e meio faz. Ainda assim, sou fuzilado por uma pequena multidão de olhares. Alguns enfurecidos, outros piedosos. Uma senhora do segundo grupo se aproxima. Deseja compartilhar valiosos ensinamentos:

– Esse suco está gelado?

– Um pouco – e eu já imaginava para onde ia a conversa, mas dei corda.  – Por quê?

Sua filha está com o nariz escorrendo. Não sei se você deveria dar bebida gelada a uma criança com gripe.

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Quem não vê pensa que minha filha estava aprisionada dentro de uma grande bola de meleca verde. E que eu, um idiota lobotomizado, iria servir um pedaço de iceberg a uma menina aos prantos. Respirei fundo e ouvi mais um pouco:

– Você quer ver como eu a faço parar de chorar rapidinho?

Concordei um meneio de cabeça e sorri por dentro. A Clara adora essas espertalhonas. Como no dia em que a levamos a uma especialista do sono que prometia, bem, resolver o problema do sono, dela e nosso. Aplicando uma espécie de chave de braço na pequena – possivelmente um dos momentos mais bizarros da história da pediatria –, ela sentenciou:

–Agora, prestem atenção em como se faz.

Compreendendo que seus pais estavam sendo ridicularizados por aquela senhora de jaleco, Clara inaugurou o berro mais agudo de sua vida, interrompido apenas quando tivemos o bom senso de dizer à inconformada médica: “Moça, já está tarde, acho que vamos indo”, 350 reais mais pobres mas secretamente vingados.

No restaurante por quilo, tivemos uma espécie de medalha de prata daquele grito estrepitoso. A senhorinha deu início a um não solicitado espetáculo de caretas, ouviu poucas e boas e saiu de fininho. Pronto: o choro voltava a ser assunto só de nós dois, comme il faut.

Já é chavão dizer que as pessoas se desesperam quando vêem um pai sozinho. Não vou ficar de mimimi porque, na escala dos problemas sociais, a suposição de incapacidade paterna (acabei de inventar esse nome. Gostaram?) deve ocupar um honroso 63.789º lugar. Ainda assim, é uma condição um tanto desagradável.

De duas, uma: ou se rasgam em elogios (“Noooossa! Na farmácia com as crianças? Superpai!”) ou, o que é mais comum, fazem de tudo para, muitas aspas aqui, “ajudar” (“Para alimentar uma criança, você espera ela abrir a boca e aí põe a colher”). Parecem descrentes de que você consiga garantir que aquele pequenino ser não será raptado por abutres, tragado para as profundezas de uma piscina de bolinhas ou atropelado por um unicórnio elétrico até o fim do passeio. A menos, é claro, que te iluminem com preciosas dicas do que e como fazer.

E claro: tudo piora quando você efetivamente faz uma c*g*da. Certa vez, prendi o dedinho da Clara num brinquedo no parquinho. Novamente eles, ah, os olhares, desta vez se sentindo intimamente justificados, como se levantassem uma plaquinha imaginária: “EU JÁ SABIA!”.

Parte da culpa é dos próprios pais. Como são ainda são poucos fazendo o que tem de ser feito, um pai se ocupando de seus filhos é visto como uma criatura exótica e limítrofe. Tomando por base meu exemplo pessoal, reconheço que o nível de qualidade dos serviços prestados é um pouco irregular. Sou lento para trocar fraldas, péssimo para combinar roupas e, mesmo com duas filhas, tenho evidentes problemas com rabos de cavalo.

Está muito claro que deveríamos ter passado da fase do pai provedor (que não faz nada com filhos), do pai de fim de semana (que faz pouquinho) e (essa ficha me demorou a cair) do pai ajudante, que assume, quase que aliviado, o papel de coadjuvante. Deixa com a mulher não só o grosso das tarefas mas também a carga emocional do trabalho invisível de gestão de tretas no planejamento da rotina dos filhos e da casa. Uma queixa feminina comum e pra lá de justa.

O machismo escondido nessa atitude

Outra metade do problema está com os russos. Vocês já não sentiram que o subtexto da tal “ajuda” muitas vezes é um raciocínio do tipo “Mas onde está a mãe dessa criança?”. Puro machismo. No caso das minhas crianças, a mãe poderia estar onde quisesse. Na situação em específico estava trabalhando, inclusive ganhando mais do que eu.

Ser o pai e ser a mãe validados pela sociedade significa desempenhar papéis sociais tão arraigados que, quando aparece algo minimamente diferente, a turma estranha. O mundo gira: na escola das minhas filhas, no dia da brincadeira em família, a esmagadora maioria dos responsáveis eram pais. Ainda são coisas restritas a um certo vale dourado de gente progressista e endinheirada, mas acho que é um movimento sem volta. Por enquanto, arcaico e moderno vão convivendo meio desencaixados, trombando a todo tempo.

A solução, caros pais, está em nossas mãos. Precisamos nos unir para desfilar nossa falta de jeito, nossa inabilidade crônica e desleixo com a higiene até que isso se torne o padrão outro de cuidado parental. Eu diria muito mais, mas acabo de ver que a Clara está a ponto de ligar o fogão. Saí já daí, menina!

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Pedro Scooby deve saber: a vida de pai não está no Instagram (e isso é bom) http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/2019/07/06/pedro-scooby-deve-saber-a-vida-de-pai-nao-esta-no-instagram-e-isso-e-bom/ http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/2019/07/06/pedro-scooby-deve-saber-a-vida-de-pai-nao-esta-no-instagram-e-isso-e-bom/#respond Sat, 06 Jul 2019 07:00:26 +0000 http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/?p=575

(Reprodução Instagram)

Me perguntam se Pedro Scooby é um bom pai. Respondo, e só posso responder isso, que não tenho a menor ideia, aliás não sei bem quem é Pedro Scooby. Me explicam que é o ex da Luana Piovani, atual da Anitta e que sua mais nova polêmica (aparentemente, ele se mete em algumas) é ter aparecido para ver os filhos (são três) e ter registrado (óbvio) nas redes sociais os petizes cantando músicas da funkeira. Anitta ainda é funkeira, ou já foi em algum momento? Divago: fico sabendo que a postagem enfureceu La Piovani, que também pelas redes sociais (óbvio) recomendou a leitura de Monteiro Lobato contra o “emburrecimento”.

E aí?, me questionam novamente, Pedro Scooby é um bom pai? A resposta continua a mesma, mas a pergunta agora me fez pensar. Costumo dizer — e aqui não vai nenhuma crítica ao cara, que nem conheço — que é muito fácil pagar de paizão. 

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Como a concorrência ainda é fraca, inutilidades aleatórias que você faça com seus filhos são, aos olhos da sociedade, motivo de exaltação de suas extraordinárias qualidades. Levou sozinho no médico? Deslumbrante! Comprou sorvete? Altruísta! Buscou na escola? Anjo! Se você fraudar a realidade com emojis, digo, se postar qualquer uma dessas bobagens no Instagram… que homão da porra!

Falo em fraude da realidade não só porque as redes sociais são uma versão editada, tipo power point brega de casamento, sobre quem somos. Digo isso porque a vida com filhos é, em geral, um perrengue atrás do outro. Doença, fralda, insônia, choradeira, birra (uma infinidade delas), brigas (com os pequenos, em casal, com os parentes próximos, com os distantes, no trabalho e no trânsito), falta de tempo (para si, para os outros, para os filhos e para o mundo), de dinheiro (idem), de paciência (ibidem). 

Nenhuma dessas histórias vira stories no Insta. Nas redes, gente queixosa e com olheira não dá like, e se você manda essa real do parágrafo aí de cima, ela pode voltar como um bumerangue na sua cara: “se você reclama tanto, por que teve filhos?”

O raciocínio por trás da patada é que os momentos que valem a pena na paternidade/maternidade são do tipo que a gente publicaria nas redes. Para mim, é uma ideia mais falsa que filtro sépia. Claro que esses instantes são divinos. Mas em geral são apenas isso: instantes. Há importância, e também pode haver prazer, no trabalho inglório de acordar cedo, trocar fralda, fazer papinha, levar e buscar, esperar… 

As miudezas cotidianas são uma grande fonte de conhecimento mútuo. Penso na hora do sono e no tanto de confiança que é preciso construir para que uma criança durma em seus braços; na preparação das refeições e no significado de cozinhar para os outros, às vezes com os outros; na aula de natação, em que sua presença, mesmo do lado de fora da piscina, pode ser a diferença que faz o pequeno encarar a água; na arrumação da casa, em que todos estamos meio irritados e meio entediados juntos, mas estamos juntos.

Esse é o ponto: estar junto, fazendo não importa o quê. Reconhecer isso leva à constatação de que — eureca! —  é longe das telas que crescemos como pais e filhos. Quanto a Pedro Scooby, Luana e filhos, torço para que cresçam em paz. Opção que também depende, claro, deles.

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Reduzir os evangélicos à Marcha para Jesus é simplificação grosseira http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/2019/06/22/reduzir-os-evangelicos-a-marcha-para-jesus-e-simplificacao-grosseira/ http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/2019/06/22/reduzir-os-evangelicos-a-marcha-para-jesus-e-simplificacao-grosseira/#respond Sat, 22 Jun 2019 20:03:57 +0000 http://emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br/?p=566

Presidente Jair Bolsonaro participa da 27ª Marcha para Jesus em São Paulo, na quinta-feira (20). Foto: Jales Valquer/Framephoto/Estadão Conteúdo

A presença de um presidente da República sempre joga luz num evento. Foi assim com a aparição de Jair Bolsonaro na Marcha para Jesus, ação conjunta realizada por diversas denominações neopentecostais em todo o Brasil. Não se pode negar, porém, que o evento já tinha brilho próprio. A Marcha de 2019 é a 27a edição do evento trazido ao Brasil em 1993 pela Igreja Renascer em Cristo. Sempre foi gigante: organizadores falam em 3 milhões de pessoas nas ruas. A polícia não divulgou números.

Longe dos olhos da grande mídia até bem pouco tempo, esse público cresceu de maneira consistente ao longo das últimas duas décadas. O resultado, como ocorre na maioria das vezes, é um retrato embebido em preconceito e generalização. Os “crentes” seriam radicais religiosos, conservadores, manipulados por pregadores inescrupulosos interessados em esfolar os fiéis pelo dízimo. Como todo estereótipo, há um bocado de imprecisão — e outro tanto de desumanização, o que faz com que a empatia pelo grupo retratado de forma caricatural seja baixa.

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A primeira imprecisão é falar genericamente em “evangélicos”. Existem inúmeras denominações neopentecostais no Brasil, cada uma com suas próprias liturgias e leituras da Bíblia. O podcast Café da Manhã da Folha de S. Paulo, traz uma análise interessante dessa pluralidade invisível. No programa, a repórter Anna Virginia Balloussier, veterana na cobertura das Marchas para Jesus, conta que uma das grandes queixas dos fiéis é justamente a visão unidimensional que a mídia faz deles, reduzindo a complexidade dessas pessoas apenas ao aspecto religioso.

Evangélicos tem, sim, uma religião com características fortes — o aspecto missionário e de conversão é provavelmente a mais perceptível delas. “Isso ocorre porque o neopentecostalismo é prosélita, ou seja, tem interesse em expor ao máximo à religião, evangelizar”, explica Gabriela Valente, doutoranda da Faculdade de Educação na FEUSP com uma tese sobre as interfaces entre educação e religião. Não se pode esquecer, porém, que essas pessoas também exercem outros papéis sociais: são pais e mães, alunos, trabalhadores, consomem mídia, participam de grupos diversos.

Dessas interações — a chamada socialização — vão surgir são também formas de agir e de pensar que vão constituir a identidade dos “evangélicos”. A ênfase na meritocracia e no empreendedorismo, por exemplo, não está presente apenas em certas exegeses neopentecostais, mas no pensamento liberal que alicerça o próprio capitalismo. Idem em relação ao conservadorismo, como aponta o pesquisador Ronaldo de Almeida no artigo “A Onda quebrada: evangélicos e conservadorismo”.

Sobre a tal onda conservadora, Ronaldo escreve: “A religião, as religiões, os religiosos fazem parte desse movimento mais amplo, sendo constituintes e constituídos por ele. Os evangélicos não são causa nem resultante, mas estão articulados ao processo social mais geral. Assim como nem todos os evangélicos são conservadores” — chamam a atenção o caso das igrejas evangélicas gay friendly — “a pauta conservadora vai além dos evangélicos conservadores. Dela participam também católicos, outras religiões e não religiosos”.

Nos momentos de choque, porém, há uma diferença importante. “As pesquisas mostram que, no caso dos neopentecostais, existe uma espécie de hierarquia de socializações. Em situações de impasse, a religião e os valores familiares costumam contar mais para um fiel do que, digamos, questões ligadas à cidadania e aos direitos humanos”, afirma Gabriela.

Definitivamente problemática é a mistura entre religião e política. Há diversos estudos que identificam em determinadas igrejas evangélicas um projeto de poder — o televangelismo e a presença de lideranças religiosas no legislativo e, mais recentemente, no serviço público, são as facetas mais visíveis.

Ao fazer da Marcha um palanque, anunciando inclusive planos para a reeleição, Bolsonaro pega carona nesse bonde questionável. “É complicado um presidente aparecer como pessoa pública e discursar num evento desse tipo. A única forma de respeitar todas as crenças é garantindo a laicidade do estado, a neutralidade religiosa. Bolsonaro não apenas legitimou uma crença específica como associou o estado à religião”, finaliza Gabriela.

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