O Brasil precisa e vai ser melhor que Bolsonaro
Em Melhor é Impossível, Jack Nicholson dá vida a um dos personagens mais irritantes da história do cinema. Racista, machista, antissemita e malcriado, seu Melvin Udall é um escritor de romances que sofre de transtorno obsessivo-compulsivo. Vive isolado e de mal com o mundo até que conhece a garçonete Carol Connelly (Helen Hunt), a única que suporta seu jeito abespinhado.
Para ir ao ponto: Melvin se apaixona por Carol (é Hollywood, gente). Durante um jantar, ele comete uma de suas inúmeras grosserias e ela ameaça se mandar. A menos, diz Carol, que ele a impeça com um elogio. E o que Melvin diz, uma das frases mais citadas na história das comédias românticas, têm esse poder: "Você me faz querer ser um homem melhor".
Há pessoas de que fato são assim. Inspiram o melhor em nós. Quando se tornam líderes, são capazes de influenciar virtuosamente coletividades mais amplas. Uma equipe de trabalho. Uma sala de alunos. Um país. Outros, ao contrário, despertam o que há de mais sórdido. Sentimentos e comportamentos negativos — como aqueles de Melvin Udall — que por boas razões permanecem sufocados num cantinho do inconsciente. São impróprios para o convívio social. Isso, claro, até que alguém levante o veto civilizatório e decrete que é aceitável, desejável até, sentir tais coisas, fazer tais coisas. Acabou a mamata, o mundo mudou e — como é que se dizia mesmo? — é melhor já ir se acostumando.
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Mesmo aos desavisados, seis meses bastaram para perceber que Bolsonaro pertence ao time daqueles que envenena tudo o que toca. Como nota Eliane Brum, é incapaz de uma gentileza ou de empatia por quem não pertença a seu clã ou lhe abane o rabo. Nos desperta o primitivo, o tosco e o beligerante. Estigmatiza, divide, ataca e, covarde que é, tem especial predileção por golpear os mais frágeis: indígenas, moradores de rua, LGBTs, mulheres, negros, ambientalistas, professores, dependentes químicos, artistas, pacifistas, pensadores, famélicos, nordestinos, mortos pela Ditadura, estrangeiros (a menos que sejam americanos) — a lista é longa e sempre crescente. Em resumo, Jair Bolsonaro é a anti-Helen Hunt: ele nos faz querer ser homens e mulheres piores.
Paralisia, bolha, alienação
Diante do pesadelo, o que temos feito? Estamos paralisados em pânico, temos corrido para as montanhas seguras da alienação ("não me fale de política, só de Netflix") ou para os santuários quentinhos das bolhas sociais. Nas arenas reais e virtuais, lastimamo-nos entre iguais sobre o ponto a que chegamos, reforçamos indignações com pessoas que pensam da mesma maneira, trocamos receitas de ansiolíticos e oportunidades de emprego no exterior.
Podemos, precisamos e iremos ser melhores que Bolsonaro. Se a narrativa do homem cordial e do Brasil afável e acolhedor é um mito, também é uma meia verdade dizer que somos um país de corruptos e canalhas preconceituosos. Por outra: talvez sejamos as duas coisas e muito mais, dinamicamente, à espera do incentivo certo para desabrochar. Não foi assim, estimulado por uma "resposta" (violenta, falsa, obscurantista) diante da crise, que o bolsonarismo cresceu?
Ele floresce na divisão. Apoia-se num equilíbrio precário, depende de um país rachado em três (bolsonaristas + direita/centro + esquerdas). Não é por outro motivo que sua entourage investe na guerra permanente contra inimigos cada vez mais numerosos. Para manter a base de apoio, as atrocidades precisam se ampliar em progressão geométrica. Junto com o engajamento, vem a radicalização: apoio à tortura e à matança, preconceitos variados, censura, elogio do trabalho infantil, devastação ambiental, antiintelectualismo. Ou seja: uma aposta no pior das pessoas.
É hora do contraveneno.
Trocar os óculos de ver o mundo
É preciso lembrar que a maioria dos brasileiros não compra, nem nunca comprou, a necropolítica do capitão. Ocorre que essa maioria se encontra atomizada. São recentes as cicatrizes do impeachment, da divisão diante das sucessivas reformas, da prisão de Lula, da Lava Jato e da Vaza Jato, do apoio de Tabata à previdência… Não pretendo negar a importância de certas controvérsias. Mas parece cada vez mais claro que, diante do apocalipse que é Bolsonaro, tudo isso se rebaixa ao status de disputas de brinquedo no jardim da infância.
Será que precisamos discutir a relação justo agora? Sério que vamos tirar no palitinho quem é o mais puro a essa altura do campeonato, tomando de 7 a 1?
A sugestão é olhar mais para o que nos une e menos para o que nos divide.
Convocando novamente a Carol de Melhor é Impossível: há pessoas cujos traços realmente me enervam, mas é possível buscar o que há para admirar nelas. Coragem, bom humor, criatividade, alegria, resiliência, generosidade. Tudo isso é muito real e há de existir — ou viveríamos isolados pela incapacidade crônica de convívio mútuo. Talvez o ódio semeado em nossa história recente esteja nos impedindo de ver certas coisas. Se for assim, culpemos nossa miopia, não o mundo. E troquemos de óculos.
De todas as características turvadas pela raiva e pela divisão, a mais importante de valorizar neste momento é a solidariedade. Trata-se do laço entre pessoas que sabem que sua sobrevivência depende da repartição de direitos e deveres. É o entendimento de que todos partilhamos um destino comum, e que não pode haver felicidade, desenvolvimento, sociedade, país — em resumo, vida — se não for para todos. Se cada um não contribuir pensando, a um só tempo, em si e nos outros.
Tenho em mente os que não se entregaram à barbárie: não é ser excessivamente otimista dizer que todos compartilhamos essa crença. Só é preciso iluminá-la e reconhecer sua centralidade hoje. (Em alguma hora, também vamos precisar olhar para o tio bolsonarista e procurar enxergar o que de positivo existe nele. Mas isso pode ficar para um segunda etapa: há muita treta para resolver entre os semelhantes que ainda não desistiram da civilização).
O Brasil não é um horror. Ele está um horror. Há muito a fazer. Um país inteiro não pode ser, e não será, refém do que há de mais abjeto em si.
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