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Em Desconstrução

“Filtro de idoso” apavora porque nos lembra que somos mortais

Rodrigo Ratier

17/07/2019 04h00

No FaceApp, não foi bem assim. (Crédito: arquivo pessoal e divulgação)

A primeira impressão é de assombro. Serei assim quando velho? O tempo passa, mas eu imaginava um outro destino. Certa vez, uma amiga me garantiu que, na maturidade, eu teria a cara do Ricardo Darín. A profecia me trouxe paz de espírito. Mas, agora, segundo a tecnologia russa que raleia o cabelo, retira layers de colágeno e usa dados pessoais para sabe-se lá o quê, a bola de cristal da moça estava severamente furada.

O segundo olhar é mais resignado: aqueles idosos ali na imagem somos nós mesmos. A velhice está chegando e, para quem está na casa dos 40, a juventude ficou para trás. Prova disso é que o filtro oposto, "jovem", faz um sentido incrível. De onde veio essa foto da adolescência que nem eu sabia que tinha?

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O curioso é que tanta gente tenha sentido a necessidade de compartilhar socialmente o resultado do envelhecimento artificial. E que apareçam as reclamações. Iniciada a onda viralizante, os conhecidos sommeliers de post alheio resolveram condenar a brincadeirinha inocente que, sejamos francos, não faz mal a ninguém. O mundo anda tão sofrido que um "parem de inundar minha timeline com fotos de velhos" soa totalmente fora de contexto. Vamos nos indignar com o que importa.

Desconfio que na reprimenda haja algo além da tradicional tendência da internet de polemizar sobre absolutamente tudo. A velhice incomoda porque, junto com o declínio corporal, vem a lembrança inescapável de que ela representa o fim da vida. As sociedades ocidentais lidam muito mal com a morte e o ato de morrer. No espetacular ensaio "A Solidão dos Moribundos", o sociólogo alemão Norbert Elias identifica uma forte tendência, nas sociedades ditas "avançadas", a tentar evitar a ideia de que a vida tem um fim. Afastamos esse pensamento de nós o tanto quanto possível – encobrindo-o, reprimindo-o ou assumindo uma crença inconsciente em nossa própria imortalidade. Os outros morrem, eu não.

Um dos efeitos desse processo é que, muitas vezes, a morte principia ainda em vida. Os idosos, parcela da população que mais nos lembra da finitude, muitas vezes são invisibilizados. Como escreve o sociólogo:

"A fragilidade dessas pessoas é muitas vezes suficiente para separar os que envelhecem dos vivos. Sua decadência as isola. (…) Isso é o mais difícil – o isolamento tácito dos velhos e dos moribundos da comunidade dos vivos, o gradual esfriamento de suas relações com pessoas a que eram afeiçoados, a separação em relação aos seres humanos em geral, tudo o que lhes dava sentido e segurança. Os anos de decadência são penosos não só para os que sofrem, mas também para os que são deixados sós".

A solidão da morte em vida

Para Elias, a dificuldade de empatia dos "vivos" – provocação pertinente! – com os velhos é uma das fraquezas de nossas sociedades. "O problema social da morte é especialmente difícil de resolver porque os vivos acham difícil identificar-se com os moribundos", completa. Trata-se de obstáculo exclusivo da raça humana. Entre todos os seres vivos, apenas nós sabemos que vamos morrer.

Talvez por isso o passatempo de se ver idoso ao alcance de um filtro de aplicativo provoque tanta curiosidade e, ao mesmo tempo, pavor e repulsa. De alguma forma, a representação de um futuro que não é belo (e não estou falando dos aspectos estéticos do envelhecimento) sepulta a crença na vida eterna. A tecnologia permite ver que um dia compartilharei a velhice e a morte com todo o resto da humanidade. A tecnologia projeta em mim traços familiares de um tio idoso, de um avó, de um pai. Mortos ou, ao menos, mais próximos da morte do que nós.

A tecnologia igualmente nos faz pensar no papel que desejamos na maturidade. Sabedoria reconhecida ou motivo de piada? Aposentadoria com alguma dignidade ou trabalhar até morrer? Proximidade de quem se ama ou isolamento? Qual, enfim, o significado de nossa presença na velhice? Volto a Elias:

"Nem sempre é fácil mostrar aos que estão para morrer que eles não perderam seu significado para os outros. Se isso acontece, se uma pessoa sentir quando está morrendo que, embora ainda viva, deixou de ter significado para os outros, essa pessoa está verdadeiramente só".

Ao imaginar nosso futuro, podemos também pensar no papel e na atenção que destinamos aos nossos idosos. A conclusão muitas vezes pode nos envergonhar… No fim das contas, uma bobagem tecnológica que nos arremessa à terceira idade nos faz ver com outros olhos quem dela hoje faz parte.

Sobre o autor

Rodrigo Ratier é jornalista, professor universitário, pai de duas, curioso pela vida, entusiasta do contraditório

Sobre o blog

Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente

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