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Em Desconstrução

Ser multitarefa não é vantagem: é assim que vivem os animais na selva

Rodrigo Ratier

15/06/2019 04h00

(iStock)

Sociedade do Cansaço, de Byung-Chul Han (Editora Vozes, R$ 15), é um livro que não cansa. É fininho (128 páginas), cabe no bolso e traz reflexão inquietante para quem, de alguma forma, sente os efeitos de um mal-estar generalizado no planeta e não consegue entender bem o porquê. Han, filósofo coreano radicado na Alemanha, põe o banzo na conta do que classifica como "sociedade do desempenho". Ele se refere ao desejo de maximizar a produção, de fazer sempre e sempre mais. De tão requisitada, essa ambição ganha ares de uma segunda natureza, habitando o inconsciente social.

A pressão por desempenho, por sua vez, desemboca no culto à chamada capacidade multitarefa. Você sabe: trata-se da habilidade, tão valorizada no mercado de trabalho, de fazer várias coisas ao mesmo tempo. Han observa o fenômeno de maneira implacável. Segundo o filósofo, não há nenhuma vantagem em ser multitasking. Ao contrário, é um baita pulo para trás. "Trata-se de um retrocesso. A multitarefa está amplamente disseminada entre os animais em estado selvagem."

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Multitarefa como coisa de animais selvagens… Viver como um gato de pelo eriçado – em estado constante de alerta, ansioso aos sinais de ameaça – faz sentido na natureza, quando há predadores por perto e a sobrevivência está em jogo. Ao degustar seu alimento, um bicho precisa ficar esperto para que ele mesmo não se transforme em jantar de outra espécie. Dividir a atenção, assim, é uma necessidade vital nesse ambiente.

Problemas: "o animal não pode mergulhar contemplativamente no que tem diante de si, pois tem de elaborar ao mesmo tempo o que tem atrás de si". Dito mais rudemente, os bichos não podem curtir plenamente o momento nem na hora de comer nem na hora de copular, duas experiências universais de prazer. O gozo parcial ou interrompido, convenhamos, é uma tremenda privação.

Você já entendeu aonde quero chegar… Han dá o recado e eu apenas repito: "as mais recentes evoluções sociais e a mudança da estrutura da atenção aproximam cada vez mais a sociedade humana da vida selvagem".

Jogos de computador, redes sociais, apps diversos exigem uma atenção ampla – que dê conta de olhar para tudo – mas rasa, sem profundidade contemplativa ou analítica. É também uma atenção dispersa, que pede uma rápida mudança de foco entre várias atividades. É uma atenção intolerante com o tédio: rejeita a reflexão que, no fim das contas, é importante para a criatividade.

O olhar pessimista de Han vê conexões entre multitarefa e a degradação cultural contemporânea. A cultura, segundo o filósofo, pressupõe um ambiente em que seja possível uma atenção profunda. No século passado, o sociólogo alemão Norbert Elias formulou raciocínio semelhante. Para ele, foi a partir da supressão das ameaças de morte imediatas – quando o homem e a mulher não precisaram estar tão alerta para o risco de serem mortos por outros bichos e outros homens – que nasceram as noções de passado e presente e que a civilização foi sendo construída.

    No mundo em que as ameaças imediatas à vida estão em tese mais controladas, as origens da ansiedade são outras. A malaise contemporânea se encontra ao alcance da mão, nos smartphones, que escancaram as portas para muitas das coisas que falamos até aqui – pressão por desempenho, necessidade de dar conta de tudo ao mesmo tempo, o pulo de janela em janela…

    Não é coincidência que cresçam os relatos de vício em celular e também as pesquisas que equiparam o uso do aparelho ao abuso de drogas. Em direção oposta, ganha força a tendência da atenção plena – está aí a redescoberta da meditação e o hype em torno do mindfulness. Ao propor uma mudança de comportamento, essa contracorrente joga luz numa questão importante: quanto da ansiedade de hoje não é autoimposta? Quanto da tara por desempenho e multitarefa não deriva de nossa incapacidade de dizer não às pressões de chefes, filhos, amigos e conges, digo, cônjuges?

    Sim: estamos falando de desconexão. Você pode pensar que seu trabalho e sua vida não permitem esse – não deveria ser, mas é – luxo. Permita-me discordar educadamente com um exemplo concreto, o meu. Trabalho com internet, estou envolvido em diversos projetos e uns trocentos grupos, tenho duas filhas pequenas, enfim, um cotidiano algo caótico. Ainda assim, tenho tido sucesso com o – não deveria ser, mas é – desafio de desligar totalmente o celular num período relativamente longo, da noite de 6ª feira à manhã de 2ª.

    O próximo passo é fazer o mesmo durante a semana, a partir das sete da noite. Pode até irritar algumas pessoas (minha esposa não é exatamente uma fã da técnica). Mas tem sido excelente para curtir uma coisa de cada vez e, pelo menos por algum tempo, não me sentir numa selva.

    Sobre o autor

    Rodrigo Ratier é jornalista, professor universitário, pai de duas, curioso pela vida, entusiasta do contraditório

    Sobre o blog

    Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente

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