Topo

Em Desconstrução

Não é só no domingo: soneca da tarde é resistência contra o mundo injusto

Rodrigo Ratier

25/04/2019 18h30

Um misto de "que fofo" com "que inveja" (Foto: iStock)

São duas e meia da tarde de uma terça-feira. Estamos sozinhos em casa. Uma conferida na lista de tarefas e, não, nada de importante. Próximo compromisso é buscar as meninas na escola às 17h. Olho para ela que, charmosa, faz que não vê. Mas é um jogo que se joga a dois, ambos sabemos onde isso vai chegar. Estou deitado, preparo o terreno. Uma afofada aqui, uma alisada adiante, pronto: caio na cama, hora de dormir.

Uma demissão tem suas vantagens. Depois de 15 anos trabalhando das nove às cinco, seis, sete, oito, fui, hum, liberado para novos desafios. Eis que me vejo como professor horista e freelancer, com menos dinheiro e com uma agenda mais errática – e certos bônus não previstos. Algumas horas livres em algumas tardes são o maior benefício.

Veja também

Eu poderia caçar mais trabalho, escrever mais um texto para o blog, ler um livro ou lavar a louça. Coisa para fazer não falta e, na real, estou sempre eternamente atrasado. Por outro lado: que se exploda. Tenho usado esse tempo para dormir. Culpa zero e, na verdade, acho pouco. Raramente mais que meia hora por dia. Não vou estabelecer meta, mas o objetivo é atingi-la e dobrá-la. Num plano francamente delirante, quem sabe até por o pijama e me ninar dizendo bons sonhos.

Dormir à tarde é um privilégio. Costuma estar ao alcance de crianças pequenas, idosos aposentados, um ou outro desocupado e, mais recentemente, de gente que decidiu desacelerar. A soneca vespertina tem vantagens comprovadas. O livro francês Apprendre a Faire la Sieste ("Aprender a Fazer a Sesta") enumera algumas.

Apoiado em quatro décadas de pesquisa sobre o sono, o autor Eric Mullens defende que a sesta, mais que um aspecto cultural de determinados povos, é uma atividade natural. A cronobiologia indica o intervalo entre uma e cinco da tarde como o segundo período de maior sonolência durante as 24 horas. Perde, evidentemente, para a noite. O sono vespertino, portanto, é uma necessidade ao longo de toda a vida. Nós é que o abandonamos cedo demais.

Não estamos falando de um tempo demasiado grande. Segundo Mullens, um pouco mais de 20 minutos bastam para que a soneca cumpra sua principal função: ajudar a recuperar a energia para o resto da jornada. A privação da sesta, por outro lado, pode ser um risco. Experimente cortar o repouso vespertino de um filho pequeno e transforme sua vida em cada um dos círculos do inferno.

O campo da saúde é o mais óbvio, mas há um outro registro em que a soneca nos reabilita gloriosamente. Num certo sentido, ela é um grito de rebeldia contra o mundo. Em Sociedade do Cansaço, o filósofo Byung Chun-Han esmiuça a exaustão contemporânea. Chega à conclusão de que ela é um produto da sociedade do desempenho, em que as palavras de ordem são metas, eficiência, produtividade. Em suma, o universo em que vivemos hoje.

O convite que o mundo nos faz é para estarmos constantemente em movimento. Se possível, produzindo, e se possível ganhando dinheiro para isso. Ocorre que não se trata de um destino. O repouso está, ou deveria estar, ao alcance mesmo de quem literalmente está debaixo de um bombardeio. Conta-se que o primeiro-ministro britânico Wiston Churchill não dispensava a siesta nem mesmo durante a guerra: duas horas de duração, sempre às cinco da tarde. Isso não o impediu de liderar os aliados contra Hitler, o que deve ter soado ao ditador nazista como suprema humilhação: derrotado por um rotundo senhor que nunca abriu mão do ronquinho à tarde.

Han nos diz que o trabalho é uma espécie de degradação da vida e que, no fundo, o homem não nasceu para trabalhar. Há um tanto de elitismo nessa fala – o trabalho, muitas vezes em jornadas e condições abusivas, não é uma escolha para a grande maioria da população. Mas podemos usar a provocação para olhar para a minoria que pode escolher ir mais devagar e trabalhar menos. Muitos seguem acelerados. Por que não param um pouco?

A soneca, nesse sentido, é um majestoso dedo do meio para a sociedade da produção incessante. É como se disséssemos: há uma pequena parcela da minha vida que nem a família, o cliente ou chefe, a internet ou o WhatsApp conseguirão roubar de mim. Sensação maravilhosa é ver o mundo se consumir em catástrofe do lado de fora do quarto enquanto usufruímos do tesouro da revolta. Pela próxima hora, vou fechar as cortinas e dormir.

Sobre o autor

Rodrigo Ratier é jornalista, professor universitário, pai de duas, curioso pela vida, entusiasta do contraditório

Sobre o blog

Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente

Em Desconstrução