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Em Desconstrução

"Deixa a pretinha pra lá": racismo em escola de RJ mostra nosso preconceito

Rodrigo Ratier

21/04/2019 04h00

(Crédito: Rodrigo Ratier)

Abro espaço nesta semana para um texto do amigo Mario Luis Grangeia. Jornalista, escritor e doutor em sociologia pela UFRJ, Mario testemunhou um caso de racismo na escola que sua filha frequenta. Recuperando ocorrências semelhantes, pesquisas sobre o tema e refletindo sobre sua própria experiência como aluno, ele nos propõe um olhar no espelho– necessário e, por vezes, doloroso – como caminho inescapável para combater a discriminação racial.

* * *

Uma família carioca tornou pública, dias atrás, uma dor antes só dela. A filha de 7 anos sofria racismo de colegas de turma. Os pais, sem sucesso nas tentativas de aplacar de vez agressões verbais e físicas, tiraram as três filhas da escola. O caso me tocou bastante por ter deixado de rever as três indo e vindo – minha filha é aluna na educação infantil na mesma instituição.

A escola divulgou nota e carta dizendo que tem atacado o racismo e reforçará o combate. Fiquemos de olho para discursos e práticas não descasarem. Nesse caso recente, os pais se alarmaram com razão quando testemunharam a filha ouvir uma colega dizendo "deixa essa pretinha pra lá". Até quando afirmações assim vão circular entre adultos e crianças?

É desconcertante ver essa violência simbólica em espaços onde crianças devem se sentir seguras. Que ao menos essa reação do casal de pais faça mais brasileiros pensarmos no tema. É importante reabrir esse debate. É o que tento fazer neste texto.

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Tentei lembrar se presenciei ofensas racistas na escola… Em dez anos no Colégio de São Bento, vi muitos meninos – éramos só homens – se chamando de coisas menos toleradas hoje (intoleráveis já naqueles anos 1980/90). Colegas negros eram uma minoria que ouviu gracinhas sem graça que se diluíam em meio a tantas troças (talvez mais numerosas pela falta de meninas) e que, na nossa idade, eram menos identificáveis como discriminatórias.

Como em tantas escolas, havia provocações (e preconceito) pelo bairro de onde se vinha, o sobrepeso, o aparelho dentário e, entre diferenças como essas, a cor da pele. Crianças podem ser cruéis e, num dia, alunos mais velhos levaram franzinos como eu até perto do campo de futebol, nos seguraram e ameaçaram nos fazer engolir lesmas, aproximando-as de nossos rostos. Um de nós era negro, mas isso não importou ali – até onde me recordo.

Tenho certa lembrança de um inspetor negro, que chamávamos pelo nome no diminutivo, não julgar grave (ou pelo menos não reagir) ao ser chamado de "negão" por alguém do corpo discente ou docente – professores, na maioria homens, não raro entravam em zombarias. Eram outros tempos… Isso pode contextualizar, sem nunca desculpar, atitudes desse tipo.

O humorista Hélio de la Peña, que estudou lá duas décadas antes de mim, recontaria com orgulho a primeira conversa de sua mãe com o reitor do colégio. Após se informar sobre a chance de Hélio ganhar bolsa, ela quis alertar o monge beneditino sobre um traço do filho.

Ah, tem mais uma coisinha. É que o meu filho, ele é… ele é…

Ele é?

Ele é negro.

Dom Lourenço fitou minha mãe de cima a baixo e disparou:

Bom, isso eu já imaginava, minha senhora…

Contei tantas vezes essa passagem que já nem sei se realmente aconteceu ou se inventei.

Ainda na crônica "O Colégio de São Bento e eu", que abre o livro "Pula, pula, macacada, que amanhã não tem mais nada", de estórias contadas por ex-alunos do CSB, o autor não dourou a pílula: "Fui transportado para uma realidade bem distante da minha infância. Não foi fácil ser negro, pobre e suburbano no meio da garotada da Zona Sul". Como se vê, o desafio segue tristemente atual.

Por onde andará seu racismo?

Em meados da década passada, TVs e rádios veicularam uma campanha boa de lembrar: "Onde você guarda o seu racismo?", nascida de um projeto coordenado pelo Ibase e com 30 organizações da sociedade civil. Engajado na iniciativa, o então pesquisador do Ibase Mauricio Santoro, amigo hoje professor da Uerj, notou que essa campanha pressupunha que todas as pessoas seriam um pouco racistas. "Podemos não ter atitudes que mostrem isso abertamente, mas, por alguma razão, mantemos a bizarra crença de que pessoas são melhores ou piores do que outras devido à cor da pele", frisou em artigo da época.

Em lugares públicos deste Rio de Janeiro outrora destino de africanos escravizados, mais de 200 pessoas foram indagadas sobre onde guardariam seu racismo. Depoimentos eram usados para criar os vídeos, cartazes, folders e outdoors. Surpresos com a pergunta, os entrevistados emendavam na forte negativa quanto a serem racistas e, após interpelados, abandonavam o politicamente correto em cenários como "o que você faria se estivesse numa rua escura e aparecesse um negro?" ou "e se seu filho namorasse uma negra?". As respostas à questão mor, ainda segundo o texto de Mauricio Santoro, eram bem sortidas:

Nas piadas.

Não sou racista, mas a sociedade me obriga a ser.

No passado, isso é algo da escravidão, não existe mais.

Como é que vou ser racista se minha noiva é morena?

No medo.

Eles são muito piores. Quando conseguem um bom emprego, pisam na gente.

No inconsciente.

Não sou racista. Talvez eu simplesmente não goste de gente que faz coisas erradas.

Entre os vídeos criados para essa campanha, eu destacaria três desabafos bastante crus:

A gente levou nosso afilhado de três anos para uma festa e uma criança da mesma idade disse pra ele "Minha mãe detesta gente preta e eu também". [Depoimento de um casal pardo]

Minha mulher e eu saímos de férias, chegamos no hotel e eles falaram "não pode entrar aqui. Aqui é um hotel de família". [Depoimento de um estrangeiro casado com uma negra]

Eu estava no ônibus com meu ex-marido que é branco. Teve uma blitz. Eu, a única mulher negra, fui a única a ser revistada. [Depoimento de uma senhora]

O artigo de Santoro saiu no fim de 2004 e merece a leitura de quem quer saber mais da campanha, do racismo no país e de políticas contra ele até então.

 Confronto, autogerenciamento ou silêncio?

Estudos sobre diversas questões do racismo no país têm proliferado nas últimas décadas. Para concluir, quero recuperar achados de duas sociólogas com quem muito aprendi na UFRJ. No artigo "Interpretações e reações à estigmatização étnico-racial: narrativas dos Negros Brasileiros em perspectiva comparada", as professoras Graziella Moraes Silva (hoje no IHEID, em Genebra) e Elisa P. Reis (minha orientadora no mestrado e doutorado) analisam narrativas e respostas de negros brasileiros à estigmatização e à discriminação.

Dos 160 negros brasileiros ouvidos, só 18 não narraram incidentes desse tipo. Tal como os depoimentos colhidos para a campanha "Onde você guarda o seu racismo?", alguns citados nesse artigo geram um misto de perplexidade e indignação.

"Eu fui a Brasília fazer uma entrevista pro Jornal, e fui convidada a uma festa. Eu fui superarrumada (…) quando eu voltei pro hotel, devia ser uma hora da manhã, eu estava com um vestido vermelho, penteada, maquiada, e falei pra recepção do hotel 'Quarto 402'. E o sujeito, em vez de me dar a chave, ligou pro quarto e falou… ele ficou assim, me deu um meio sorriso e falou assim 'Não está atendendo'. Eu falei: 'Não está atendendo porque é o meu quarto, eu te pedi a chave'. Imediatamente a feição dele mudou, ele achou que eu era uma prostituta e tinha ido atender um cliente porque, assim, uma negra arrumada, em Brasília, uma hora da manhã, não passa pelo código…"

[Mulher, jornalista, 39 anos, identifica-se como Negra e Parda de acordo com categorias do IBGE]

"Uma vez que eu fui ver um apartamento na Barão de Mesquita e quando eu cheguei quem me recebeu foi um porteiro, nordestino. [Os nordestinos] são extremamente discriminados, principalmente no Rio de Janeiro. Eu falei: 'Eu queria ver o apartamento tal'. 'O apartamento já foi alugado'. Mas, ele não me olhou nos olhos e eu vi que ele estava mentindo, eu não gosto de gente que não te olha nos olhos. Aí, eu cheguei em casa e mandei o meu pai [que é branco] se arrumar, ele se arrumou, penteou o cabelo e desceu e foi lá e disse que queria ver o apartamento, então ele foi andando com o meu pai, e eu fui atrás do meu pai e ele não me viu, e falou: 'Pro senhor ver, veio ver uma 'neguinha' ver o apartamento, será que essas pessoas não se enxergam, não?'. Aí, eu cheguei e falei: 'Oi. Pai'. Aí, eu arrasei com ele: 'Eu poderia te botar na cadeia, mas, não vou botar porque eu acho que você é um infeliz, você também sofre preconceito…'".

[Mulher, assistente social, 59 anos, identifica-se como Negra e Preta segundo categorias do IBGE]

O estudo feito na UFRJ a partir de trabalho em cooperação com americanos e israelenses  inovou ao lançar luz às reações de negros brasileiros à estigmatização e ao racismo. Para quem não sabe como as escolas podem aperfeiçoar seu combate ao racismo, esse artigo se mostra como uma dica de leitura útil para deixar de lado muitos achismos e blá-blá-blá.

Três tipos principais de resposta à estigmatização e ao racismo foram realçados no Brasil: confronto, autogerenciamento e não resposta. Tais estratégias foram citadas praticamente com a mesma frequência por brasileiros (pouco mais da metade citou cada uma). Nos EUA, o confronto foi a estratégia mais citada como a tomada por eles, bem como a ideal.

Os brasileiros argumentaram que o racismo deveria ser discutido, mas de forma educada e pouco agressiva, ao contrário dos entrevistados nos EUA e Israel (palestinos, etíopes-israelenses e judeus de origem árabe). Como a maioria aqui crê que o racismo é fruto da ignorância, se deu ênfase à educação ("educar os racistas") e às respostas não violentas.

Quem prefere se autogerenciar parece ter refletido mais sobre os custos e benefícios das estratégias disponíveis. Reações pelo humor – um tipo de autogerenciamento – mostram-se mais frequentes no Brasil do que nos EUA e em Israel. A não resposta, por sua vez, foi muitas vezes atribuída a uma falta de reação ou sensação de passivos, impotentes e sem escolha. Em outros casos, não se respondeu por considerar os incidentes insignificantes ou sujeitos à capacidade de perdoar vinculada a uma avaliação de superioridade moral.

Como filho de professores, cresci ouvindo a ideia de que, em sala de aula, cada professor também é aluno e vice-versa. Como professor num pré-vestibular comunitário, vi de perto tal inversão de papéis frente a turmas de idades, raças, origens e destinos diversificados. Agora como pai, espero que as escolas multipliquem lições antirracistas que tornem velha a múltipla escolha "confronto; autogerenciamento; silêncio" que o racismo impõe aos agredidos.

Sobre o autor

Rodrigo Ratier é jornalista, professor universitário, pai de duas, curioso pela vida, entusiasta do contraditório

Sobre o blog

Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente

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