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Em Desconstrução

Na alfabetização, MEC ignora pesquisas sobre o pensamento infantil

Rodrigo Ratier

20/03/2019 10h26

(Crédito: Luiza Bessa Ratier)

Recentemente, demos à minha filha Luiza um conjunto de cartões vencidos. Entre cartões de crédito e débito, entradas de clube, de biblioteca e tíquete-refeição, havia uns 15 exemplares, meus e de minha esposa Marina. Num certo momento, a pequena se isola num canto da sala e começa a examinar os cartões. Reune-os em duas pilhas e entrega uma à mãe, dizendo: "Toma, mamãe. Esses são seus".

Índice de acerto: 100%. Não é que minha filha seja um gênio. Bom, na verdade ela é, mas isso não vem ao caso. Do alto de seus quatro anos recém-completados, Luiza não está formalmente alfabetizada. Mas já lê e escreve de seu jeito, percebendo as letras que já conhece, tentando relacionar a ilustração de um livro com a legenda, entendendo a diferença entre letras e números, formulando, enfim, hipóteses sobre tudo o que está escrito. Peço a ela que escreva seu nome para ilustrar esse texto. Ela me diz que não sabe escrever direito, a que respondo, do fundo do coração: eu amo o jeito como você escreve. E é verdade: acho emocionante ver, na tentativa da escrita, a expressão de um cérebro potente, que reflete sobre o significado daquelas cinco letras.

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Parece simples e intuitivo, mas é tanta coisa para considerar! Primeiro, ela precisa registrar seu nome com letras, e não com rabiscos, números, traços aleatórios. Segundo, ela deve controlar a quantidade de letras que vai usar. Terceiro: garantir que elas estejam na ordem correta, principiando pelo L e terminando com o A. Quarto: tem de escrever da esquerda para a direita, que é como as sociedades ocidentais fazem seus registros. Quinto: necessita grafar as letras de forma correta, evitando, por exemplo, o espelhamento que ela ainda faz com a letra U.

Essa complexa sequência de operações conceituais é objeto de pesquisa científica há décadas. Um marco incontornável foi o lançamento do livro Psicogênese da Língua Escrita, de Ana Teberosky e Emilia Ferreiro. Na obra, como o próprio nome indica, as autoras investigam como se desenvolve, na cabeça de cada criança, o entendimento do que é a escrita.

A compreensão de que um sistema de sinais (as letras) representam a fala vem aos poucos. Primeiro, a criança vê os adultos escrevendo e os imita, fazendo rabiscos (as garatujas) aleatoriamente. Depois, descobre que existem as letras, e passa a representar palavras com as letras que conhece, mas ainda sem correspondência com o som. Essa ligação vem numa terceira fase, em que cada sílaba corresponde a uma letra. Cavalo, por exemplo, pode ser A-V-O. Na quarta fase vem o entendimento de que uma sílaba pode ter duas ou mais letras. E daí o aperfeiçoamento ortográfico que não termina nunca. Num certo sentido, estamos todos em alfabetização, até o fim.

O jeito mais indicado para percorrer esse caminho é o contato com situações e atividades que já façam parte do mundo infantil. A grande base é o nome próprio, tanto da criança como de seus próximos. Luiza é muito familiarizada com as letras L, C, R, M, e isso não é à toa. O L é a inicial de seu nome e da grande amiga Lorena. O C é da irmã Clara e da amiga Camila. O R, do meu nome, da madrinha Raquel e do padrinho Ricardo. E o M de duas Marinas, da mãe e da melhor amiga. E assim vai, com desafios que envolvem lista de frutas, parlendas, músicas que os pequenos saibem de cor etc.

Provavelmente, não foi assim que você foi alfabetizado. Até algumas décadas atrás, predominava o método fônico, que concentra a atenção na relação entre letras e sons e só depois chega à leitura. Ele pode ser apresentado de diversas formas, mas a mais tradicional – e ainda comum – são as cartilhas. Lembra do ba-be-bi-bo-bu, ca-co-cu (o ce-ci ficava para uma outra lição) e outras famílias assemelhadas? Então: partia-se do pressuposto que primeiro era necessário memorizar as sílabas para depois formar palavras (be-bê) e frases – muitas delas nonsense, como a icônica "Ivo viu a uva". Uma criança pode se perguntar quem é Ivo, que é que tem a uva e por que diabos ele decidiu dedicar sua atenção ao fruto da videira.

Funciona? De alguma forma, sim. Estou escrevendo este texto e você está lendo. Mas uma grande amiga, que me ensinou tudo o que sei sobre alfabetização, tem uma provocação muito válida: fomos alfabetizados APESAR das cartilhas. O pensamento "no meu tempo era melhor" ignora, ainda, que até os anos 1990 a escola era para poucos (justamente os mais vulneráveis ficavam de fora) e que a alfabetização vai muito além de saber escrever o nome e decifrar textos. Quase um terço dos brasileiros são considerados analfabetos funcionais, pessoas que, mesmo sabendo identificar letras e números, não conseguem interpretar bilhetes simples e fazer operações matemáticas elementares.

O que a maioria dos especialistas defende hoje é uma certa coexistência dos métodos, com o uso da melhor atividade para alfabetizar cada criança em específico. Resta pouca dúvida, porém, que considerar a forma como a criança pensa – premissa contida nos métodos global e de inspiração construtivista – estimula a construção do pensamento lógico para além da alfabetização.

O Ministério da Educação (MEC), como antecipou o repórter Paulo Saldaña na Folha de S. Paulo, pretende novamente dar uma banana para as evidências e priorizar o método fônico. O principal defensor da medida é Carlos Nadalim, secretário de alfabetização da pasta, cujo principal serviço prestado à área é ser proprietário da Escola Mundo do Balão Mágico, em Londrina. A Folha também anuncia que o projeto deve incentivar a alfabetização já na Educação Infantil, o que novamente contraria pesquisas e políticas públicas. A recém-aprovada Base Nacional Comum Curricular, por exemplo, defende que creche e pré-escola são momentos de brincadeira, convívio social e exploração do mundo. É assim que a criança pequena aprende – e muito.

Na rede pública, a adesão será "voluntária" – aspas necessárias porque quem opta por não aderir a um programa federal vê escassear recursos e oportunidades de treinamento. O que na prática vai significar o que sempre significou: quem é rico e pode por seu filho ou filha numa boa escola particular vai escolher o método de alfabetização que lhe convier. Quem é pobre terá de seguir as instruções da rede pública. Somam-se às enormes e conhecidas dificuldades das escolas municipais e estaduais a visão obscurantista do MEC, que despreza – mais uma vez – a pesquisa e o debate público. Quem perde é a população mais humilde – numa ironia sem graça, boa parte dela eleitora de Bolsonaro.

Sobre o autor

Rodrigo Ratier é jornalista, professor universitário, pai de duas, curioso pela vida, entusiasta do contraditório

Sobre o blog

Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente

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