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Em Desconstrução

Lula merece um julgamento justo. Mas isso não vai acontecer

Rodrigo Ratier

20/12/2018 11h27

(Crédito: José Cruz/Agência Brasil)

É impressionante a capacidade de a sociedade brasileira se mobilizar em torno do líder máximo do PT. Pelo amor e pelo ódio, tudo gira em torno do retirante nordestino que se tornou presidente e depois foi preso. Compreensível. Sua trajetória exemplar de trânsito entre mundos sociais é o resumo mais bem acabado da luta de classes à brasileira, num contexto de acomodações, enfrentamentos e, sobretudo, de brutal desigualdade. Por isso, em termos da centralidade no debate público, mesmo atrás das grades Lula continua sendo "o cara".

Num certo sentido, o relógio do brasileiro foi congelado no dia 7 de abril. Em vez de encerrar a questão, a prisão de Lula acirrou ânimos e parece movimentar, como subtexto, boa parte dos lances da política e da vida social nacional. A decisão posteriormente cassada do ministro Marco Aurélio Mello sobre a liberdade de condenados em segunda instância (Lula seria, potencialmente, um dos beneficiados) foi apenas o capítulo natalino da novela.

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Prendê-lo e mantê-lo na cadeia não foi e não tem sido obra fácil. Houve e há muito malabarismo por parte de seus algozes. Decisões de tribunais e organismos internacionais foram desrespeitadas (comitê da ONU defendendo o direito da candidatura, decisão de soltura do TRF-4), ilegalidades foram cometidas (o vazamento inconstitucional, por Moro, de telefonemas entre Lula e Dilma) e a seletividade entrou em cena (o petista teve sua indicação como ministro de Dilma barrada pelo STF, enquanto Moreira Franco, igualmente réu, passou ileso na administração Temer; Lula foi condenado em primeira instância em 16 meses, enquanto Eduardo Azeredo, protagonista do mensalão tucano, recebeu sentença em tempo seis vezes maior).

O grande buraco é a sentença que mantém hoje Lula atrás das grades. A começar pela acusação rocambolesca: Lula teria aceitado corromper a República em troca de um modesto agradecimento futuro (considerando seu patrimônio), num apê meia-boca de balneário decadente, numa espécie de pós-venda mequetrefe das empreiteiras. Aceita a hipótese pouco plausível, é queixa repetida e verdadeira dizer que a condenação se deu sem provas materiais. A isso, costuma-se opor que a corrupção não deixa rastros e que seria preciso recorrer a provas testemunhais. E no caso do tríplex elas são fragilíssimas.

Léo Pinheiro, ex-diretor da OAS e personagem-chave no episódio, não tocou no nome de Lula em seu depoimento de 2016. Teve a delação recusada. Foi preso, teve a pena fixada em 26 anos e 7 meses. Para o espanto de zero pessoas, incriminou o ex-presidente em abril de 2017. Em janeiro de 2018, viu seu tempo de reclusão cair para 3 anos e 6 meses em regime semiaberto.

O combo prisão preventiva + delação premiada é objeto de crítica de diversos juristas, que enxergam na combinação uma forma de coagir testemunhas a "fechar narrativas" para casos de corrupção. Tornou-se, ainda, atalho para investigações apressadas — que, sem precisar de provas "clássicas", se contentam, agora, com o levantamento de suspeitas.

O bolo do julgamento duvidoso ganhou como cereja a espetacular saída do armário do ex-juiz Sergio Moro. Ainda que houvesse rica coleção de episódios de atuação política, seu coming out não foi isento de surpresas. Supunha-se que era tucano, revelou-se bolsonarista. Atendeu ao convite do capitão reformado com a excitação de um jovem recebendo um diploma, conforme o futuro presidente. Fechava, assim, um ciclo em que passava de julgador a ministro do principal adversário político de Lula — tomando, no meio do caminho, medidas para tirar o petista do jogo.

Difícil enxergar justiça num desenrolar de fatos que incluiu uma sondagem para ministério ainda durante a campanha, como admitiu o futuro vice-presidente Mourão. "Bolsonaro dá emprego importante a juiz que encarcerou seu rival", registrou o jornal britânico The Times, ecoando a avaliação da maior parte da imprensa mundial — muito provavelmente, a mesma que estará nos livros de história daqui algumas décadas.

"Mas não é sobre Moro", pode-se argumentar. "Se não foi justo, como é possível que tenha sido condenado em duas instâncias?". Há explicações consistentes para isso. Consistentes porque baseadas em evidências. Estudo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre o perfil médio dos juízes desenha um profissional de elite, conservador e distante da realidade: homem, branco, 47 anos, casado, católico, origem nos estratos sociais mais altos, renda média de 47,7 mil reais. Um em cada cinco tem parentes na magistratura.

Pelo conceito de habitus de classe — novamente, evidenciado em pesquisas –, a sociologia de Pierre Bourdieu nos mostra como pessoas submetidas a uma socialização homogênea — frequentam as mesmas escolas, se informam de maneira parecida, comungam dos mesmos valores — tendem a perceber o mundo e reagir a ele de forma igualmente homogênea. Assim, uma decisão tomadas por pessoas com identidades semelhantes tende a ser… semelhante.

Um julgamento justo exigiria uma investigação para valer e um judiciário heterogêneo. Exigiria um esforço da imprensa em discutir a solidez da decisão, traduzindo adequadamente os termos jurídicos para o público amplo. É verdade que os tempos são de gritaria e de predomínio da emoção sobre a razão. Ainda assim, quem quisesse formar opinião sobre a legitimidade da condenação precisou — e ainda precisa — navegar pelas 218 páginas da sentença de Moro. O jornalismo pode e deve fazer melhor serviço, interpretando os dados brutos à luz de análises e de espaço para o contraditório.

Seria preciso, por fim, contar com a apreciação crítica da opinião pública. E aí voltamos ao ponto inicial que nos faz rodar em círculos. Para quem o odeia, parafraseando Lima Barreto e a saúva, ou o Brasil acaba com Lula ou Lula acaba com o Brasil. Não importa que as relações de FHC quanto à atuação em palestras e levantamento de recursos para seu instituto tenham sido semelhantes às de Lula, e que no seu caso não tenha se operado a criminalização da política. Também não faz diferença se sobre o futuro presidente e seus próximos recaem suspeitas de pedágio salarial, crime eleitoral e caixa 2. Está tudo bem, e sobre esse último aspecto, Moro, que considerava recursos não contabilizados como uma trapaça pior do que a corrupção, agora defende o colega ministro acusado do mesmo crime dizendo que ele admitiu o erro e já pediu desculpas.

Novamente, sem novidades. No livro "A Democracia Impedida", o cientista político Wanderley Guilherme do Santos mostra como a retórica anticorrupção é uma arma da direita conservadora desde pelo menos o segundo governo Vargas. Nunca foi pela lisura: é sempre pelo poder. Em nome disso, tudo continuará sendo culpa de Lula e do PT, ontem, hoje e sempre, pelos séculos dos séculos, amém.

Um julgamento justo para Lula é necessário e, ao mesmo tempo, impossível. Nada indica que o judiciário venha a abandonar sua guinada política e seu histórico de decisões elitistas. Continuarão lucrando os santos de pés de barro que construíram sua imagem como antítese do líder preso. A turba seletiva seguirá empunhando sua ferocidade de hashtag apenas contra Lula, mesmo que para isso seja preciso entregar o governo a um clã de lunáticos. Com mais condenações à vista, a hipótese de o maior líder popular da história do país passar o resto de seus dias preso se afigura como a mais provável. O Brasil é magnânimo na aniquilação de suas grandes histórias.

Sobre o autor

Rodrigo Ratier é jornalista, professor universitário, pai de duas, curioso pela vida, entusiasta do contraditório

Sobre o blog

Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente

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