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Em Desconstrução

Que bom que agora tudo vai deixar de ser culpa do PT

Rodrigo Ratier

29/10/2018 11h49

(Crédito: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Jair Bolsonaro venceu a eleição. Que bom.

Que bom que agora tudo vai deixar de ser culpa do PT. Da crise econômica à corrupção, do desemprego à violência, da comida sem tempero ao inverno fora de época. Agora, vai ser preciso encontrar outro inimigo para nossas mazelas seculares e cotidianas, um outro bode expiatório para esse esporte nacional que é terceirizar a responsabilidade pelos problemas. Que bom.

Que bom que agora o eleito vai ter a chance de explicar seu programa de governo. Ele poderia tê-lo feito ao longo de todo o segundo turno, mas preferiu fugir dos debates. Teremos, enfim, a chance de entender o que está confusamente expresso em 81 slides de power point com ofensas, ideias truncadas e erros de português. É bom que Bolsonaro tenha a oportunidade de mostrar ao povo, sobretudo às classes populares que o elegeram, como será possível melhorar a educação sem investir um centavo a mais na área, com ensino a distância ou interditando o debate livre de ideias com o Escola Sem Partido. Vai ser interessante assistir à tentativa de "expurgar a ideologia de Paulo Freire" das escolas apenas para perceber que, infelizmente, ela nunca esteve lá.

Que bom, também, será ver a molecada que gravou vídeos na escola gritando "mito" e fazendo sinal de arminha agora tendo a chance de cantar o hino nacional todo dia e recebendo lições de amor à pátria e lealdade à bandeira em aulas dinâmicas e inovadoras de Moral e Cívica e OSPB. Que bom que esses jovens vão poder por em prática – sentadinhos em fileiras, em silêncio, com os uniformes impecáveis e sem celular, é claro – a contracultura pela qual tanto batalharam em seus filmetes viralizados pelo WhatsApp, Facebook e Youtube. Será recomendável que gostem, pois agora é disciplina militar.

Que bom será dizer adeus ao temporal de notícias falsas. Elas podem até continuar a ser produzidas, mas perderão sua força. Se persistir o desemprego, a violência e o desalento, de nada adiantará inventar mamadeiras em forma de pênis, alianças subterrâneas com a Venezuela, falsas acusações de estupro e  de "legalização da pedofilia" (!!!). De nada adiantará contar e recontar e recontar, como o novo presidente vem fazendo por anos a fio, lorotas como a existência de um kit gay. Ou de um livro que "estimula a sexualização precoce" distribuído na rede pública a crianças de 6 anos, mesmo que isso jamais tenha ocorrido. Ou ainda, dizer que "o outro lado também conta mentiras" quando todas as pesquisas indicam que a enganação é desproporcionalmente maior no corner dos vencedores.

Que bom ouvir do vencedor das eleições que ele será "escravo da Constituição". Isso significa que ele pretende respeitar, por exemplo, a noção de função social da propriedade, cláusula pétrea da Carta de 1988, razão de ser de movimentos pela reforma agrária e urbana, que devem, para que se cumpra nossa lei maior, ser realizadas pelo Governo. Bom ouvir que ele respeitará as liberdades políticas. Quer dizer, então, que não passava de bravata aquele discurso do domingo passado, de acabar com toda forma de ativismo, de enquadrar MST e MTST como terroristas, de varrer do mapa os vermelhos, de mandar quem pensa diferente para a cadeia, o exílio ou a "ponta da praia" – local de execução de opositores da Ditadura Militar.

Que bom saber que o novo presidente se impõe a missão de "pacificar o Brasil". Isso implica, obviamente, identificar e punir grupos extremistas que já promovem o pânico entre LGBTs, negros e feministas. Os mesmos grupos sobre os quais dias atrás ele afirmava "não ter controle". Ou ainda justificar que também havia violência do outro lado (um levantamento indica que os bolsonaristas foram ao menos 6 vezes mais violentos). Bom que as coisas mudaram tão rapidamente e que nós, que recebemos diariamente esses relatos de ataque ou que os vemos com nossos próprios olhos, não seremos mais acusados de "semear o pânico". Estou certo de que nossos alertas serão considerados aliados da pacificação e que a violência, a mesma do abominável atentado que quase tirou a vida do hoje presidente, será combatida. Pacificar, como o mandatário eleito bem sabe, significa apaziguar, tranquilizar, acalmar. Algo que não se faz, evidentemente, com o recurso a qualquer tipo de brutalidade.

Que bom, ainda, receber áudios e inboxes de amigos e parentes dizendo que é hora de baixar as armas e "nos juntarmos em prol do Brasil". Até às 18h59 de ontem, não era. Que bom receber pedidos de desculpas – sempre depois do resultado sacramentado – por ter sido chamado de esquerdopata, petralha, defensor de presidiário, ladrão ou burro, ou ladrão e burro. Sem nunca ter sido filiado ao PT, sem ter votado no PT no primeiro turno, sem jamais ter defendido ou assinado embaixo tudo o que o partido praticou. Que bom, também, é ver um convite para voltar ao grupo do futebol, ou uma parte da família chamando para uma "macarronada da paz". Que bom é nunca ter respondido às ofensas na mesma moeda. Que bom é poder aceitar as desculpas sem rancor, mas, por enquanto, recusar esses convites. O afeto também é feito de admiração – e essa, sem dúvida, se perde quando se escuta que gay tem mesmo de apanhar, nordestino é tudo burro e que mulheres de esquerda tem mais pelo que cadela. Talvez a admiração tenha se esvaído por um tempo. Talvez para sempre.

Que bom, finalmente, é ver um deputado que passou 27 anos na Câmara com um único projeto aprovado, sem relatar proposições de destaque, registrando presença e indo embora, faltando sem justificativa a 272 sessões das comissões em que era membro, ter, aos 63 anos, a chance de arregaçar as mangas para melhorar a situação do país. Que bom que vai poder usar todas as pedras que tem na mão não mais para atacar, mas para construir alguma coisa. Que faça um bom governo. Que bom que é hora, finalmente, de trabalhar.

Sobre o autor

Rodrigo Ratier é jornalista, professor universitário, pai de duas, curioso pela vida, entusiasta do contraditório

Sobre o blog

Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente

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