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Em Desconstrução

No Brasil-terror de Bolsonaro, só há espaço para quem concorda com ele

Rodrigo Ratier

22/10/2018 15h11

(Crédito: José Cruz/Agência Brasil)

É indignante e penoso, ao ponto da náusea, assistir ao discurso do deputado Jair Bolsonaro transmitido por telefone no último domingo, 21 de outubro, a militantes reunidos na avenida Paulista. Em tom robótico-militar, o presidenciável do PSL proclama "nós somos a maioria" e promete uma "faxina muito mais ampla", "uma limpeza nunca vista na história do Brasil". Ameaça "banimento da pátria" aos opositores – "marginais vermelhos", "gangue", "petralhada", "vagabundos". Estes "ou se enquadram e se submetem", "ou vão para fora, ou vão para a cadeia". Sentirão a polícia fazendo "a lei valer no lombo". Vão fazer companhia ao "cachaceiro lá em Curitiba".

Não há, na história política recente do país, qualquer precedente para um discurso de ódio tão vulgar e cristalino. A estratégia do "nós contra eles" foi mobilizada por diversos atores políticos, sendo corresponsável pelo contexto de ultrapolarização política em que nos encontramos. Mas apenas Bolsonaro defende, de forma reiterada e extremada, o silenciamento violento de adversários. É inegável e evidente. A turba, emburrecida e embrutecida, aplaude, grita, delira. Não percebe o perigo à espreita, não enxerga o alvo se aproximando perigosamente da própria testa.

Quem está sentido na pele já sabe. Para quem ainda não está, a fala de Bolsonaro não deixa dúvidas: quem semeia o terror é ele. Nós vamos colhê-lo. Já estamos colhendo. O país de Bolsonaro não é para quem pensa diferente.

A identificação dos opositores é propositalmente ambígua. A que "vermelhos" se refere o capitão reformado? À cúpula do PT? Aos 31 milhões de brasileiros que votaram em Fernando Haddad no primeiro turno? Aos outros milhões que agora apoiam o petista não por convicção, por enxergarem no candidato do PSL a ameaça maior? E o que seria a imprensa "vendida"? E "fake news"? E a lei? A função social da propriedade, pelas quais lutam mulheres e homens do MST e MTST ("bandidos, as ações de vocês serão tipificadas como terrorismo"), também não está na Constituição?

À moda de Trump, tudo é confusamente definido para que sempre caiba mais um no camburão da intolerância. E da irresponsabilidade: quanto ao terror que já bate à porta dos alvos de suas palavras, Bolsonaro diz não ter controle. Empodera milícias que atacam, virtual e fisicamente, grupos cada vez mais numerosos: gays, mulheres feministas, negros e indígenas, militantes de esquerda, integrantes de movimentos sociais, jornalistas e professores. Jogo combinado. Livres para agir, esses grupos retroalimentam o bolsonarismo, que depende da sensação constante de pânico para se manter vivo.

Em conexão carismática com a morte, seus apoiadores acusam o outro lado (também de contornos imprecisos): "vocês fazem igual", "vocês estão plantando pânico". As agressões se multiplicam e não adianta dizer: "aconteceu com um conhecido de um amigo", "foi com meu irmão", "vi com meus próprios olhos". Tudo não passa de fake news. É terrível reconhecer em amigos e familiares, cegos pelo ódio a um partido, a cumplicidade conivente diante de uma barbárie que se agiganta aos olhos de todos. Cegos e surdos e insensíveis aos apelos quase súplicas de quem já está sofrendo na pele os efeitos do que está por vir.

A inversão de sinais prossegue. Bolsonaro diz: "somos amantes da liberdade", "queremos distância de ditaduras", "queremos viver em paz". Não é racional nem lógico nem cabível afirmar tais coisas depois de anunciar o extermínio de quem pensa diferente. Mas não estamos no terreno nem do racional nem do lógico nem do cabível. A defesa do indefensável não se pauta por argumentos. De um lado está a destruição alimentada pelo ódio e pelo pânico: é preciso varrer a pátria dos inimigos, que são todos os outros. De outro, no lado "propositivo", um eloquente conjunto vazio. Ou por outra, as platitudes e ofensas reunidas num Power Point de 81 telas apresentado pelo candidato como programa de governo.  O confuso amontoado de frases estridentes e EM CAIXA ALTA, com erros de português, ideias desconexas, estatísticas surrupiadas da internet e textos desconfigurados faria corar um estudante que o apresentasse como trabalho do Ensino Médio. Que dirá como plataforma ao cargo mais importante da nação.

O "documento" faz jus à trajetória do capitão reformado. Bolsonaro passou a maior parte de sua longa e improdutiva carreira legislativa sendo tratado como um personagem folclórico. Em busca de notoriedade, prestou-se ao papel de político extremado que caia como luva a programas humorísticos e shows trash de variedades. Usando tais espaços para declarações homofóbicas, racistas e violentas, cativou uma fatia do eleitorado que se supunha grande o bastante para lhe render sucessivos mandatos como deputado, mas pequena para alçar voos no executivo.

Como o freak show performático e o vazio de pensamento se tornaram ideologia hegemônica será assunto para os livros de História. Complicado, mesmo, é estar vivendo a História. Escorados no autoengano, pseudodemocratas apostam na moderação após a eleição. O discurso de domingo reafirma que essa crença não encontra qualquer lastro na realidade. Entre eufóricos e histéricos, os apoiadores do capitão papagueiam: B17, aceita que dói menos, nossa bandeira jamais será vermelha, fora traidores da pátria. Com inegável gozo, proíbem a milhões de irmãos e irmãs o direito de existir. Às vésperas da eleição, o capitão imita Parreira na Copa de 2014 e diz que já está com "uma mão na faixa". Difícil discordar da comparação. O destino do Brasil parece ser um interminável 7 a 1.

Sobre o autor

Rodrigo Ratier é jornalista, professor universitário, pai de duas, curioso pela vida, entusiasta do contraditório

Sobre o blog

Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente

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