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Em Desconstrução

Imagens que explicam o Brasil: a rampa rumo ao nada

Rodrigo Ratier

24/05/2018 15h37

Rampa de acessibilidade para calçada sem calçada (Imagem: Rodrigo Ratier)

A cidade é Sacramento (MG), mas não se apegue demais ao nome do município. Poderia ser qualquer um dos 5.570 existentes no país. Coisas semelhantes às da foto, originadas de lógicas também semelhantes, estão por toda a parte.

Resplandece em azul a construção em cimento, de inclinação suave. Para chegar a ela, é preciso partir de uma calçada de pedras rústicas e atravessar uma rua asfaltada. Vencidos esses obstáculos, pode-se usufruir da rampa de acessibilidade. Que, como se vê, oferece acesso rumo ao vazio. Na parte da via pública segregada, elevada e destinada à circulação de pessoas não há calçada.

É um absurdo, mas os absurdos também têm explicação.

Pela lei municipal, a responsabilidade pela calçada é do dono do terreno. Ele precisa garantir que a área entre o meio-fio e o lote em questão, um terreno baldio, seja preenchida por uma estrutura que permita a passagem de pedestres. Para alguns juristas, leis desse tipo são inconstitucionais. Afinal a calçada é um bem público: faz parte da via de trânsito e, como a rua, é assunto da administração municipal.

Mas quem for se queixar à prefeitura provavelmente vai ouvir a justificativa de que a obrigação é o do proprietário. O poder público só faz a rampa. Precisavam instalar todas de uma vez – mesmo que não tivesse calçada, depois a gente pensa nisso. Pronto: Foram lá e construíram o acesso, envolvendo uma cadeia de profissionais que considerou que estava tudo certo com a obra.

O arquiteto planejou. O gestor público orçou e contratou. O engenheiro aprovou. O pedreiro construiu. O pintor pintou. O prefeito inaugurou. Todo mundo achou normal. Ninguém foi capaz de olhar para aquilo e dizer: "Peraí…".

Não importa que a rampa ligue o nada ao lugar nenhum. Não importa que ela não tenha serventia. Quanto a isso, ninguém tem culpa. Ou melhor: a culpa é sempre do outro. O jogo de empurra e desresponsabilização tem variações infinitas: a culpa é da união, do estado, do município, dos políticos, dos impostos ou da falta deles, do jeitinho brasileiro, de uma empresa, de um particular, de serviço terceirizado, de tudo isso que está aí.

Exceto no exemplo da foto, é claro. No caso da rampa rumo ao nada, a culpa é do cadeirante que insiste em precisar desse tipo de recurso.

(Inauguro com este post a série bissexta "Imagens que explicam o Brasil". Se você tiver fotos que revelem aspectos interessantes da vida no país, escreva nos comentários).

Sobre o autor

Rodrigo Ratier é jornalista, professor universitário, pai de duas, curioso pela vida, entusiasta do contraditório

Sobre o blog

Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente

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