Ranking do Enem consagra ensino conteudista. Entenda por que isso é ruim
Universa
19/06/2019 12h12
(iStock)
Há diversas maneiras de ler o ranking do Enem divulgado pela Folha de S. Paulo nesta quarta (19). O jornal desenvolveu uma tabulação própria dos dados do MEC (Ministério da Educação) porque, desde 2016, o governo não divulga mais resultados por escola.
A primeira maneira, mais comum, é analisar a corrida pelo topo da lista. O resultado não costuma apresentar surpresas: instituições com alunos de nível socioeconômico alto estão na dianteira. Os suspeitos de sempre se alternam nas primeiras posições, às vezes definidas na base da vírgula decimal. Em muitos casos, uma ligeira baixa pode fazer uma escola despencar no ranking, dando a falsa impressão de piora.
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As que atendem alunos mais pobres, por outro lado, estão na rabeira. A maioria delas é das redes estaduais. No setor público, apenas colégios federais, ligados a universidades, escolas técnicas ou militares têm desempenho melhor. Em comum, esses quatro tipos de instituição costumam ter muito mais recursos que a média da rede pública. Algumas possuem processos de seleção de alunos, o que enviesa a comparação. Isso também não é novidade.
O que habitualmente falta é uma análise do tipo de ensino fomentado pelo foco no exame. No mundo da educação, há uma brincadeira com fundo de verdade: diz-se que na Educação Infantil, pode-se tudo; no Fundamental 1, quase tudo; no Fundamental 2, quase nada; e, no Ensino Médio, nada.
O "nada" da provocação significa que as ações da escola devem estar voltadas para o desempenho nos testes de acesso à universidade. Há pouco espaço para intervenções que trabalhem aspectos não medidos nas provas (e há muitos: a ascensão das chamadas "competências socioemocionais" indica que características como autocuidado e convivência precisam ter lugar na escola). Em linhas gerais, o receituário dos campeões inclui uma ou mais das seguintes medidas:
- Uso de material apostilado Na lista das 10 mais, pelo menos sete escolas recorrem a esse artifício. Trata-se de organizar todo o conteúdo a ser dado em cadernos próprios, geralmente de forma padronizada. Há controles rígidos sobre o que e como cada professor deve ensinar em cada aula. A docência, segundo os críticos, pode se reduzir a uma atividade mecânica e excessivamente focada em aulas expositivas.
- Escolarização do tempo livre Os sistemas de ensino não se restringem à sala de aula: propõem tarefas mínimas, complementares, videoaulas, sala de aula invertida, enfim, uma infinidade de recursos para manter os estudantes de olho no conteúdo. A relação privilegiada é do aluno com o livro didático. Há outras formas muitas vezes mais eficazes de aprender — pesquisa autônoma, trabalho em grupo, socialização de descobertas etc. — que acabam no limbo.
- Provas, provas, provas Para incentivar a preparação para o vestibular, os exames passam a ser quinzenais ou semanais muitas vezes já a partir do Fundamental 2. Os alunos estão constantemente sendo testados — e, em muitos lugares, ranqueados por desempenho. O questionamento diz respeito à própria finalidade da educação: estuda-se para saber mais e pelo prazer de aprender ou apenas pela nota da prova?
- Terceiro ano como curso pré-vestibular É comum que o currículo do Médio acabe sendo "espremido" para dois anos ou dois anos e meio. Assim, o terceiro ano — ou ao menos seu último semestre — ganha caráter de revisão para a prova. A medida comprime ainda mais a extensa lista de conteúdos que compõe a etapa e deixa pouco tempo para a reflexão autônoma ou para projetos pedagógicos diferenciados.
- "Ampliação" do Ensino Médio É comum que muitas escolas optem por incorporar o 9º ano à estrutura do Ensino Médio, inserindo precocemente os alunos no esquema de avaliações constantes, simulados e obsessão com as provas. A justificativa é que quanto mais cedo começar a preparação para o exame, melhor.
- Incentivo à competição Premiação aos melhores alunos, medalhas para que se destaca em eventos externos (as Olimpíadas de diversas disciplinas são uma febre). A princípio, não há nada de errado em reconhecer bons desempenhos. O problema é que muitas dessas ações não vêm acompanhadas de um olhar cuidadoso para quem mais precisa — justamente os que evadem por não verem sentido na escola.
- Aumento da carga horária Aulas aos sábados, ampliação da carga horária — e cada vez mais cedo. Na instituição que lidera o ranking de escolas com mais de 61 alunos no 3º ano, as aulas se estendem das 13h20 às 20h50 — sete horas e meia, desde o 8º ano. O convívio com a família e mesmo o período para o chamado "ócio criativo" pode sair prejudicado.
- Enem como currículo de fato Uma avaliação existe para… avaliar. Na prática, entretanto, o Enem tem tido papel bem mais amplo. Na ausência de um currículo obrigatório (a capacidade da recém-aprovada Base Nacional Comum Curricular para induzir mudanças ainda está para ser testada), o exame acaba funcionando como uma lista informal do que os professores precisam ensinar. A preocupação muitas vezes vai além do conteúdo: o treino para o tipo de questão pedido pela prova também é constante. Na produção de textos, por exemplo, a ênfase quase exclusiva é na dissertação, um gênero textual que praticamente não existe fora das escolas e dos exames vestibulares.
Tudo somado, o Enem aponta para um ensino conteudista e muitas vezes massacrante para alunos e professores. Raras são as escolas que, no meio da cavalgada pelo desempenho, conseguem refletir sobre o sentido do que estão fazendo. Por que tantas provas? Quais conteúdos são mesmo necessários? Quais aulas expositivas podem ser transformadas em investigações instigantes? Precisamos mesmo de um ranking? Preparar-se para um exame é fundamental. Mas é inquietante que boa parte de nossos alunos sejam levados a ter a aprovação no vestibular como preocupação exclusiva durante três anos ou mais numa fase tão importante de suas vidas.
Sobre o autor
Rodrigo Ratier é jornalista, professor universitário, pai de duas, curioso pela vida, entusiasta do contraditório
Sobre o blog
Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente