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A sociedade ainda se desespera quando vê um pai sozinho com filhos

Rodrigo Ratier

13/07/2019 04h00

(Crédito: Javier Zubiri/Freeimages)

Sim, ela estava chorando. Não, não é o comportamento esperado para um restaurante por quilo. Também não é nada demais: não é que um restaurante por quilo seja uma sala de concertos, nem que o choro da Clara fosse um falsete de um grupo de death metal.

Portanto, sociedade, lide com isso: reclamar com alguma estridência é basicamente o que uma criança de um ano e meio faz. Ainda assim, sou fuzilado por uma pequena multidão de olhares. Alguns enfurecidos, outros piedosos. Uma senhora do segundo grupo se aproxima. Deseja compartilhar valiosos ensinamentos:

– Esse suco está gelado?

– Um pouco – e eu já imaginava para onde ia a conversa, mas dei corda.  – Por quê?

Sua filha está com o nariz escorrendo. Não sei se você deveria dar bebida gelada a uma criança com gripe.

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Quem não vê pensa que minha filha estava aprisionada dentro de uma grande bola de meleca verde. E que eu, um idiota lobotomizado, iria servir um pedaço de iceberg a uma menina aos prantos. Respirei fundo e ouvi mais um pouco:

– Você quer ver como eu a faço parar de chorar rapidinho?

Concordei um meneio de cabeça e sorri por dentro. A Clara adora essas espertalhonas. Como no dia em que a levamos a uma especialista do sono que prometia, bem, resolver o problema do sono, dela e nosso. Aplicando uma espécie de chave de braço na pequena – possivelmente um dos momentos mais bizarros da história da pediatria –, ela sentenciou:

–Agora, prestem atenção em como se faz.

Compreendendo que seus pais estavam sendo ridicularizados por aquela senhora de jaleco, Clara inaugurou o berro mais agudo de sua vida, interrompido apenas quando tivemos o bom senso de dizer à inconformada médica: "Moça, já está tarde, acho que vamos indo", 350 reais mais pobres mas secretamente vingados.

No restaurante por quilo, tivemos uma espécie de medalha de prata daquele grito estrepitoso. A senhorinha deu início a um não solicitado espetáculo de caretas, ouviu poucas e boas e saiu de fininho. Pronto: o choro voltava a ser assunto só de nós dois, comme il faut.

Já é chavão dizer que as pessoas se desesperam quando vêem um pai sozinho. Não vou ficar de mimimi porque, na escala dos problemas sociais, a suposição de incapacidade paterna (acabei de inventar esse nome. Gostaram?) deve ocupar um honroso 63.789º lugar. Ainda assim, é uma condição um tanto desagradável.

De duas, uma: ou se rasgam em elogios ("Noooossa! Na farmácia com as crianças? Superpai!") ou, o que é mais comum, fazem de tudo para, muitas aspas aqui, "ajudar" ("Para alimentar uma criança, você espera ela abrir a boca e aí põe a colher"). Parecem descrentes de que você consiga garantir que aquele pequenino ser não será raptado por abutres, tragado para as profundezas de uma piscina de bolinhas ou atropelado por um unicórnio elétrico até o fim do passeio. A menos, é claro, que te iluminem com preciosas dicas do que e como fazer.

E claro: tudo piora quando você efetivamente faz uma c*g*da. Certa vez, prendi o dedinho da Clara num brinquedo no parquinho. Novamente eles, ah, os olhares, desta vez se sentindo intimamente justificados, como se levantassem uma plaquinha imaginária: "EU JÁ SABIA!".

Parte da culpa é dos próprios pais. Como são ainda são poucos fazendo o que tem de ser feito, um pai se ocupando de seus filhos é visto como uma criatura exótica e limítrofe. Tomando por base meu exemplo pessoal, reconheço que o nível de qualidade dos serviços prestados é um pouco irregular. Sou lento para trocar fraldas, péssimo para combinar roupas e, mesmo com duas filhas, tenho evidentes problemas com rabos de cavalo.

Está muito claro que deveríamos ter passado da fase do pai provedor (que não faz nada com filhos), do pai de fim de semana (que faz pouquinho) e (essa ficha me demorou a cair) do pai ajudante, que assume, quase que aliviado, o papel de coadjuvante. Deixa com a mulher não só o grosso das tarefas mas também a carga emocional do trabalho invisível de gestão de tretas no planejamento da rotina dos filhos e da casa. Uma queixa feminina comum e pra lá de justa.

O machismo escondido nessa atitude

Outra metade do problema está com os russos. Vocês já não sentiram que o subtexto da tal "ajuda" muitas vezes é um raciocínio do tipo "Mas onde está a mãe dessa criança?". Puro machismo. No caso das minhas crianças, a mãe poderia estar onde quisesse. Na situação em específico estava trabalhando, inclusive ganhando mais do que eu.

Ser o pai e ser a mãe validados pela sociedade significa desempenhar papéis sociais tão arraigados que, quando aparece algo minimamente diferente, a turma estranha. O mundo gira: na escola das minhas filhas, no dia da brincadeira em família, a esmagadora maioria dos responsáveis eram pais. Ainda são coisas restritas a um certo vale dourado de gente progressista e endinheirada, mas acho que é um movimento sem volta. Por enquanto, arcaico e moderno vão convivendo meio desencaixados, trombando a todo tempo.

A solução, caros pais, está em nossas mãos. Precisamos nos unir para desfilar nossa falta de jeito, nossa inabilidade crônica e desleixo com a higiene até que isso se torne o padrão outro de cuidado parental. Eu diria muito mais, mas acabo de ver que a Clara está a ponto de ligar o fogão. Saí já daí, menina!

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Sobre o autor

Rodrigo Ratier é jornalista, professor universitário, pai de duas, curioso pela vida, entusiasta do contraditório

Sobre o blog

Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente

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