Tragédia em Suzano: é preciso repensar o papel do celular em nossas vidas
Rodrigo Ratier
14/03/2019 17h45
(Crédito: Mario Alberto Magallanes Trejo/Freeimages)
É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança, diz o provérbio africano. O chamado à responsabilidade coletiva sobre a formação infantil e adolescente deveria incluir uma atualização: é preciso uma aldeia em que seus membros não estejam ensimesmados com o brilho das telas de seus celulares.
A reportagem da jornalista Fernanda Mena reconstitui a trajetória dos atiradores. Ao descrever o cotidiano de um deles, o jovem Guilherme Taucci Monteiro, de 17 anos, a família se surpreende com o ocorrido. Nunca desconfiaram de que ele pudesse ter comportamento violento. A mãe chega a dizer: "Nosso relacionamento até que não era ruim. Mas a gente quase não conversava".
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A gente quase não conversava… Guilherme e Luiz Henrique, o outro assassino, viviam com "famílias desestruturadas", como se convencionou dizer. A mãe de Guilherme, por exemplo, é dependente química. Há também relatos de bullying e de abandono escolar. Claro que esses aspectos não transferem a culpa para a sociedade e suas instituições pelo ocorrido. Muita gente, muita mesmo, vivencia situações semelhantes e não protagoniza massacres ou tira sua própria vida. O ato hediondo é responsabilidade de quem o cometeu.
Mas, ainda sob o impacto da tragédia, talvez haja espaço para refletir um pouco sobre os caminhos que nossa cultura tem oferecido para que nossas crianças e jovens – no limite, todos nós – trabalhem suas angústias mais profundas.
A sociologia ensina que nossas identidades são resultado das experiências que vivenciamos ao longo da vida. Em contato com família, escola, igreja, trabalho, amigos e outras instituições sociais, socializamo-nos, o que significa: aprendemos modos de ser, agir e pensar a partir dessas referências. E também podemos influenciar, com o nosso entendimento, as visões de mundo dessas instituições. É um ciclo, como indica o inteligente jogo de palavras do sociólogo Pierre Bourdieu: interiorizamos a exterioridade (o mundo) e exteriorizamos nossa interioridade (como entendemos o mundo).
E que experiências nosso mundo tem oferecido? As instituições ditas "tradicionais" estão em crise. Pais e mães ausentes ou imersos, por opção ou necessidade, no trabalho; a escola, apartada das necessidades dos estudantes; os encontros presenciais com amigos, cada vez mais raros por conta de fenômenos como a violência; a mídia tradicional, desacreditada como nunca antes.
Em ascensão, as telas de celulares, as redes sociais, a internet profunda. Está certo que a tecnologia não pode ser responsabilizada por tragédias, e que as pesquisas não enxergam correlação direta entre games e violência, como sempre se especula em massacres como este. Mas, muitas vezes, as "respostas" que os produtos virtuais oferecem à superação de dificuldades humanas são a desumanização – a redução de determinados grupos a características negativas e demonizadoras – e a radicalização.
Ausência de contato cara a cara, impunidade pelo anonimato, reafirmação de certezas pelos algoritmos e pelo viés de confirmação. Sob determinadas condições, para determinadas personalidades e histórias de vida, a mistura típica do ambiente virtual pode ter consequências nefastas. Suspeita-se que os atiradores de Suzano foram influenciados por comunidades, na chamada deepweb, com caráter misógino, racista e violento, a ponto de indicar como saída o suicídio e o massacre de inocentes. Sofreram, em resumo, a influência de criminosos que deveriam ser combatidos.
Vera Iaconelli define o ato de tirar a própria vida como a "descrença absoluta no laço social e afetivo como forma de superar as dificuldades humanas". Cabe especular – e aqui me distancio um pouco do tema suicídio para falar sobre as angústias de forma geral – sobre quais espaços de escuta temos oferecido para que pessoas próximas possam elaborar seus sofrimentos.
Parece simplesmente errado deixar que um filho passe a noite toda enfurnado em jogos de tiro. Ou que abandone a escola para fazer moradia numa lan house. Mas talvez haja aí um espelho: qual a validade de gastar um terço, às vezes metade do dia ou mais, diante de uma tela brilhante? Que conflitos resolvemos quando investimos energia em discussões desimportantes, pensando no meme lacrador para calar o "outro lado"? Que necessidade temos em saber sobre tudo o que acontece com notificações incessantes que sequer nos deixam dormir? Quanto desse tempo dessa atenção poderia ter sido direcionada a quem realmente precisa de nós?
Celulares, computadores, redes sociais não causam massacres. Mas há tempos se sabe que a tecnologia não é neutra. De um lado, grupos que incitam o ódio e o crime na internet. De outro, multidões hipnotizadas por timelines infinitas e sem tempo para ouvir as angústias do outro. Quanto tempo vamos demorar para enfrentar esses dois problemas? Quanto tempo vamos levar para desconectar influências claramente negativas e nos reconectarmos a nós mesmos?
Sobre o autor
Rodrigo Ratier é jornalista, professor universitário, pai de duas, curioso pela vida, entusiasta do contraditório
Sobre o blog
Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente