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O que Marx diria sobre Peppa Pig?

Rodrigo Ratier

11/05/2018 14h23

Trabalho é um tema central no desenho. (Crédito: reprodução)

 

Peppa Pig é o típico desenho para crianças feito com uma piscadela marota para os adultos. Sou fã. Já cheguei a me atrasar para o serviço à espera de um raro episódio inédito. Os pequenos, que se divertem com a trama básica e o humor físico, nos lançam olhares surpresos quando rimos de algo em que eles não enxergam graça alguma. Entre as referências para maiores de idade, há brincadeiras com clássicos da literatura – o sr. Lobo vive perguntando ao Papai Pig do que é feita sua casa ("Tijolos. Portanto, nem pense nisso") –, desconstrução dos papeis de gênero tradicionais (Papai Pig é mau motorista, péssimo com mapas e tem medo de altura) e interrogações em relação aos mitos infantis (o episódio de Páscoa joga o tempo todo com a dúvida sobre quem escondeu os ovos: o Sr. Coelho ou o coelhinho?).

Há também várias menções ao trabalho, e aí, naquilo de uma-coisa-puxa-a-outra, dá para imaginar uma situação surreal. Se estivesse vivo, Karl Marx faria 200 anos neste mês. Supondo que 1- ele estivesse entre nós; 2- tivesse Netflix ou Discovery Kids; 3- estivesse buscando representações simbólicas para seu conceito de luta de classes; e 4- se deparasse com a simpática família de porquinhos com feições humanas, poderíamos formular uma questão de elevada relevância: o que o filósofo, sociólogo e revolucionário socialista diria sobre Peppa Pig?

No desenho, as relações de produção são apresentadas de maneira peculiar. Não há luta de classes aberta e caricatural como a que existe, por exemplo, em Os Simpsons. Na animação de Matt Groening, a usina nuclear é o palco da oposição entre a tirania do capital, representada pelo Sr. Burns, e o proletariado, composto pelos operários da planta. Há greves, agressões físicas, assédio moral, acidentes de trabalho, terceirização para a Índia – enfim, variadas animosidades que colaboram para fazer girar o motor da história.

Em Peppa Pig, a coisa é mais suave. Compreensível: estamos falando de um desenho para a faixa etária pré-escolar, em que todo episódio termina com os personagens às gargalhadas, estirados no chão. Não há vilões, nem espaço para grandes antagonismos. Capitalistas? Não estão visíveis. Com exceção de pequenos comerciantes como o Sr. Raposo, as pessoas trabalham para ninguém. As casas são semelhantes – dignas, mas sem ostentações – e as famílias não têm dificuldades para sobreviver. Lembra um pouco a noção de fim da história: com o colapso do comunismo e o aparente triunfo da democracia burguesa, a ascensão de uma cada vez mais numerosa classe média se colocaria como anteparo à luta de classes e indicaria o ponto de chegada da evolução sociocultural humana.

Como se sabe, esse sonho dourado não se concretizou. Com suas tradicionais piscadelas, os criadores de Peppa acenam para essa compreensão. Por trás da atmosfera geral de harmonia, surgem microconflitos em torno de uma distinção importante: a divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual. Os adultos trabalhadores do desenho se parecem, mas não são iguais…

No polo intelectual, temos o médico, Dr. Urso Pardo (também Urso Marrom em alguns episódios); o dentista, Dr. Elefante; Sr. Pônei, oculista; Dra. Hamster, a veterinária; Papai Pig, aparentemente arquiteto ou engenheiro civil (o que sabemos é que faz contas, faz maquetes, mexe com plantas de construções e comanda reformas); e Mamãe Pig, que tudo indica ser uma escritora freelancer. Junto com capitalistas de pequena escala, como o já citado Sr. Raposo, formam algo próximo de uma pequena burguesia, de papel sempre ambíguo na luta de classes: seriam também proletários ou soldados do capital?

Do polo braçal são exemplos sr. Zebra, o carteiro, e dois personagens importantes: dona Coelha e o sr. Touro. Dona Coelha é uma espécie de faz tudo da cidade, do país – na verdade, da galáxia – de Peppa. Ela vende sorvetes, trabalha na loja de porcelanas, de conserto de brinquedos, dirige táxi, ônibus escolar e helicóptero, é aeromoça, enfermeira, caixa de supermercado e balconista num café no meio da mata, em lojas de souvenirs na Beleza Local da Montanha e na Lua (viu? Galáxia!).

Empregada dos sonhos até na Lua. (Crédito: reprodução)

Dona Coelha é uma síntese do setor de serviços. Dócil, extremamente produtiva e versátil, é a trabalhadora dos sonhos de qualquer capitalista da era pós-industrial. A autoridade máxima do país, a Rainha (Peppa se passa no Reino Unido e a Rainha, mesmo não nomeada, é a própria Elizabeth II), reconhece seu esforço com uma medalha para a pessoa que mais trabalha no país. O episódio "O dia de Folga da Dona Coelha" é consagrador. Quando ela se machuca ao escorregar num carrinho de brinquedo e não pode ir trabalhar, a cidade colapsa. Ninguém consegue substituí-la. Trabalhadores intelectuais como Papai Pig são um fiasco na venda de sorvetes. Olhando a mercadoria derretida, tenta contornar: "Que tal, gostaria de uma sopa de sorvete?"

 

"Que tal uma sopa de sorvete?", sugere o intelectual (Crédito: reprodução)

 

Já o sr. Touro é o encarregado das tarefas que exigem força bruta. Não está claro quem é seu patrão. Sabe-se que ele faz frilas como pequeno empreiteiro e reparador de telhados da escola. Também lidera uma equipe que realiza obras para o poder público. Substitui grandes encanamentos, tira a neve de estradas e, principalmente, escava coisas. Às vezes com trator, outras com sua ferramenta preferida, a britadeira.

O bovino é o mais próximo que o desenho chega de um operário "raiz". No episódio "Sr. Touro na Loja de Porcelana", ele manifesta um pouco dessa consciência de classe. Quando sua equipe interdita a estrada, Mamãe Pig pergunta a que horas acaba o bloqueio. "Vai demorar o tempo que for demorar", anuncia, interrompendo o trabalho ao som de uma campainha. "Hora do chá!". Nada de jornadas intermináveis, nenhuma obsessão por produtividade: o descanso está previsto em lei.

 

"Vai demorar o tempo que for demorar" (Crédito: reprodução)

 

Há uma rivalidade mal disfarçada entre o Sr. Touro e Papai Pig. Os pequenos Peppa e George adoram o trabalho de tratores e betoneiras e isso parece incomodar o suíno. Em "A Casa Nova", ele desenha o projeto de uma nova residência e explica à filha: "Eu faço a parte difícil. O Sr. Touro tem de seguir as minhas instruções."

 

Quem é que manda? (Crédito: reprodução)

 

Uma espécie de revanche vem em "Ciência Simples". Papai Pig e Sr. Touro novamente trabalham juntos – dessa vez, reformando o parquinho da escola. A professora Madame Gazela convida o Papai para uma aula com as crianças. Quando vai explicar o endurecimento do concreto, ele entra na mistura (lembre-se: desenho para idade pré-escolar). O Sr. Touro tenta preveni-lo, mas é interrompido rispidamente: "Agora não, Sr. Touro. Estou falando com as crianças". Quando ele pode, enfim, falar, é tarde demais: Papai Pig já está concretado. Cabe ao bovino resgatá-lo com uma britadeira, sob risos das crianças.

 

Ele tentou avisar… (Crédito: reprodução)

Vejo com simpatia essa valorização sutil do trabalho manual. Não é luta de classes, mas também não é um universo harmônico e isento de conflitos. Acho que se Marx assistisse Peppa Pig, perceberia a piscadela. E piscaria de volta.

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Sobre o autor

Rodrigo Ratier é jornalista, professor universitário, pai de duas, curioso pela vida, entusiasta do contraditório

Sobre o blog

Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente

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