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Em Desconstrução

Procuradores da Lava Jato são sintoma de sociedade doente

Rodrigo Ratier

27/08/2019 16h01

(Crédito: Tomaz Silva/ Agência Brasil)

"O safado só queria passear."

O autor da frase é Januário Paludo, procurador da Lava Jato, em conversa obtida pelo site The Intercept e analisada em conjunto com o UOL

O safado, como se sabe, é Lula. 

E o passeio em questão é o enterro de Vavá, irmão do ex-presidente. 

A quem sobra um pouco de empatia –a capacidade de se identificar com outra pessoa, especialmente com sua dor–, a frase soa tão repulsiva que convida a uma segunda, terceira, quarta leitura. É isso mesmo? Alguém de fato pode enxergar no funeral de um parente próximo motivo de diversão? Por mais que se odeie Lula, é cabível imaginar o ex-presidente recebendo na cela a notícia da morte do irmão e, com um sorriso discreto, pensar: "Oba, pelo menos vou dar uma passeada?"

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Parece que é assim que pensam Januário e seus colegas de Lava Jato. Entre 2017 e 2019, o ex-presidente perdeu a esposa, um irmão e um neto de 7 anos. As mortes mereceram comentários dos integrantes da força tarefa: Deltan Dallagnol chama Marisa Letícia de "vegetal"; Januário Paludo desconfia do AVC da ex-primeira dama ("Estão eliminando as testemunhas", "não me cheirou bem"); Laura Tessler diz que a morte da esposa de Lula será "sessão de vitimização"; Depois, relaciona o AVC a "humilhantes puladas de cerca" do ex-presidente; Jerusa Viecili faz troça do funeral ("Querem que eu fique para o enterro?"); Antônio Carlos Welter diz que a morte de Marisa "liberou ele [Lula] para a gandaia"; Jerusa Viecili comenta assim a morte do menino Arthur: "Preparem para nova novela ida ao velório"; Athayde Ribeiro Costa, que a respeito de Vavá sugeriu "leva o morto lá na PF", desta vez apenas lamentou o falecimento do menino ter sido "no meio do carnaval".

A conduta dos procuradores ecoa a pergunta que nossos filhos e netos farão, daqui a algumas décadas, sobre o momento do Brasil de hoje: Como pudemos chegar a esse ponto?

Negar a humanidade ao adversário

Quando ocorre a morte de um ente querido, há uma regra social tácita: suspendem-se as críticas em respeito a quem sofre, ainda que se odeie o morto ou o parente em questão. Mesmo que as ironias não tenham sido feitas em público, elas chocam pelo grau de degradação. Se já seriam graves para qualquer pessoa que se pretenda civilizada –no espectro oposto, equivaleria a torcer pela morte de Bolsonaro com a facada–, são inadmissíveis quando se trata de procuradores da República. 

Esses devem observar o princípio da impessoalidade em seu trabalho, que basicamente é garantir que se obedeça à legislação vigente. A esse respeito, é tragicômico recuperar a frase de Orlando Martello na mesma série de vazamentos. Reconhecendo que é um direito de Lula ir ao velório do irmão Vavá (todo preso em regime fechado tem esse direito), Martello se opõe à saída por conta do perigo "caso insistam em fazer cumprir a lei".

Os diálogos obtidos pelo Intercept deixam pouca dúvida de que a Lava Jato, ao menos em relação a Lula, se comportou como partido político, tendo o então juiz Sérgio Moro como seu chefe. Os vazamentos recentes desenham contornos mais nítidos ao grau de virulência e ódio que pautou suas ações. Vistos pelo prisma da psicologia, os diálogos ironizando o luto do ex-presidente são preocupantes. Dado o grau de insensibilidade, é razoável supor que Deltan e companhia operem pela chave da desumanização. 

Trata-se de um processo, consciente ou não, de negação da humanidade aos outros. Como decorrência, os "não humanos" não teriam os mesmos direitos dos humanos, podendo por isso serem punidos com crueldade e, no limite, exterminados. 

Há farta pesquisa mostrando como a desumanização está na raiz de desastres como a escravidão e genocídios. A transformação de adversários em inimigos –às vezes, inimigos de morte–, alimenta-se do mesmo mecanismo. Os colegas procuradores mostraram que Paludo não está sozinho em sua visão desumanizada. E uma fatia da população, delirante quando o ocupante da presidência sugere mandar opositores para a "ponta da praia", mostra que a Lava Jato é apenas um sintoma da nossa sociedade –que não cansa de dar mostras de seu adoecimento.

Sobre o autor

Rodrigo Ratier é jornalista, professor universitário, pai de duas, curioso pela vida, entusiasta do contraditório

Sobre o blog

Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente

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