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Em Desconstrução

Confiar em estranhos: a lição de felicidade que o Brasil esqueceu

Rodrigo Ratier

10/04/2019 17h39

(Crédito: stoll/Freeimages)

Fiz um intercâmbio na Noruega por um tempo muito curto – um mês e meio. O suficiente, porém, para algumas experiências intensas. Já contei algumas aqui e conto outra. Era 2013 e eu achava que tinha algum tino comercial. Entrei em contato com os responsáveis por um site de classificados online, o maior do país – 3,5 milhões de usuários por ano – para entender qual era o negócio.

Uma das minhas primeiras perguntas foi sobre segurança. Como garantir que os anúncios não eram de fachada? A pessoa do outro lado do computador não entendeu muito bem minha dúvida. Insisti, dizendo que há gente mal intencionada, anunciando coisas que não existem, vendendo contrabando, aplicando golpes em geral. Aí a moça – era uma mulher – captou a preocupação, e respondeu: "Não temos nenhuma medida especial. Nós confiamos muito nas pessoas na Noruega".

Na semana passada, o país subiu no pódio do World Happiness Report, o ranking mundial de felicidade. Ficou com a medalha de bronze, sendo que os dois primeiros, Finlândia e Dinamarca, e o quarto, a Islândia, são também países nórdicos. Brasil? 32º lugar.

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Os altos índices de alegria não se devem ao clima. Esse gélido conjunto de nações experimenta invernos super rigorosos e com longos períodos do dia sem luz do sol. Definitivamente, não é o ambiente dos sonhos, mas também é um mito que eles ostentem altos índices de suicídio – nenhum dos países nórdicos está entre os trinta primeiros colocados dessa triste lista. A turma por lá é feliz, o que nos leva à pergunta: como é possível estar contente num lugar desses?

Um dos principais fatores, segundo o World Happiness Report, é que os habitantes dessas nações têm um alto nível de confiança em estranhos. Saber que ninguém vai te passar a perna num classificado online, te assaltar na próxima esquina ou confiscar sua poupança da noite para o dia é essencial para a sensação de bem-estar. A alegria de viver está diretamente ligada à crença de que o próximo, seja ele quem for, não vai te fazer mal. Ao contrário: está ali para te ajudar.

Há muitos anos tento conviver com a ansiedade e circunscrevê-la a patamares aceitáveis. Foi uma das razões que me levaram ao divã da analista, que certa vez sentenciou: "Você precisa confiar que o mundo vai cuidar de você". Dizem que analista boa não dá conselho, mas aquela dava e foi bom para mim. Viver a vida na base da confiança, no fio do bigode, como dizem os mais antigos, provocou alguns dissabores, mas me ajudou a deixar para trás a necessidade de estar sempre alerta, esperando pelo pior. Para resumir, passei a viver com muito menos medo.

A confiança em quem não se conhece não está no DNA do brasileiro. Em sua análise da brasilidade no livro "O que faz o brasil, Brasil?", o antropólogo Roberto DaMatta fala da divisão clara entre dois espaços essenciais à vida social brasileira: o mundo da casa e o mundo na rua.

Na casa está a família, "temos as 'pessoas', todos lá são 'gente': 'nossa gente'". Na rua, povoada por uma massa indiferenciada e desconhecida, moram os perigos. Nela não há amor nem consideração, nem respeito, nem amizade. "Que insegurança nos possui quando um pedaço de nosso sangue e de nossa casa vai ao encontro desse oceano de maldade e insegurança que é a rua brasileira", anotou DaMatta. O estranho, na sociedade brasileira, é o inimigo.

Dessa tese vamos colecionando arrepiantes comprovações cotidianas. O músico Evaldo Rosa dos Santos não pode contar com a confiança nos estranhos. Foi visto como inimigo pelo batalhão do exército que o fuzilou com 80 tiros, matando-o no carro em que ele estava com esposa e filho. Não é engano, é preconceito estrutural em ação. No Brasil, deixar a vida te levar é um risco que poucos podem assumir. Dependendo de sua cor e de sua classe social, o preço é alto demais.

Saída apresentada pelos poderosos de turno: colocar um trabuco na cintura de cada brasileiro e de cada brasileira. Já que não podemos mesmo confiar em ninguém, que nos matemos todos. E que os mais rápidos no gatilho sobrevivam um pouco mais. É o caso de parafrasear o título do livro: se enxergamos cada compatriota como inimigo, ainda temos uma nação? O que faz do brasil, Brasil?

Daí a importância do autocuidado e de cercar-se de afeto, mesmo que este não esteja na família. Com a polarização política desfazendo amizades e implodindo almoços de domingo, a casa já não é o espaço seguro e de prazer que foi um dia. Ainda, assim, rodear-se de apoio e confiança de que haverá alguém por nós quando precisarmos é a receita dos países mais felizes. Tomemos fôlego, porque não tem sido fácil construir essa rede de amor. O Brasil, afundando-se em individualismo, intolerância e violência, nos convida a fazer o inverso.

Sobre o autor

Rodrigo Ratier é jornalista, professor universitário, pai de duas, curioso pela vida, entusiasta do contraditório

Sobre o blog

Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente

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