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Em Desconstrução

Como Jean: Perseguições cruéis afastam ainda mais os jovens da política

Rodrigo Ratier

04/02/2019 12h02

(Crédito: Wikicommons)

Notícia no mundo todo, a renúncia de Jean Wyllys ao mandato parlamentar evidencia a dificuldade de jovens lideranças que desejam se aventurar no cenário político brasileiro. Não basta estar disposto a lidar com estruturas partidárias carcomidas, com caciques que se perpetuam no comando e conluios que impedem abertamente a renovação. A perigosa novidade é o risco de vida — e ao exemplo do ex-deputado pode-se, evidentemente, acrescentar o assassinato da vereadora Marielle Franco, em 14 de março do ano passado.

O acirramento de ânimos navega no contexto de exacerbada polarização social que impacta o mundo desde a virada da década e o Brasil desde 2013. A política, em alguma medida, se renovou desde então. Mas parte importante dos novos atores são tributários de uma atuação entre o infantil e o truculento. A regra é atacar o argumentador, e não o argumento. As respostas convocam réplicas até que se chegue às vias de fato. O objetivo é "lacrar", ou seja, encerrar a interação de uma forma que soe como definitiva e humilhante ao interlocutor. O nível do debate é baixíssimo, e para participar dele é preciso ter o couro duro para aguentar ofensas.

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Compartilho um exemplo pessoal. Tenho 21 anos de jornalismo e há 5 dedico parte de meu tempo a colunas opinativas — hoje neste blog, anteriormente como editor de Nova Escola. Em 2017, publiquei um texto argumentando que o uso de mesóclises pelo então presidente Michel Temer seria um instrumento de exclusão — a tese de "preconceito linguístico" bastante debatida pela academia, a ideia de que falar difícil não é falar bem.

Para alguns, eu estaria fazendo apologia da ignorância (o que esclareço não ser o caso já na versão original do texto, mas atenção: não é sobre o que está escrito, também não é sobre o que entendem, é sobre o que querem que a massa de internautas entenda, e assim fomentar comportamento de turba). Dias depois, dois colunistas de um jornal online escrevem, de forma coordenada, artigos me atacando violentamente. Não cito os nomes pois a fulanização é uma das estratégias de visibilidade buscadas por eles. Jean muitas vezes caiu nessa armadilha, sendo um divulgador indireto do Movimento Brasil Livre (MBL), como os próprios integrantes do grupo admitem.

Da época guardo uma listinha dos adjetivos a mim direcionados pelos articulistas e comentaristas do texto, reproduzida em texto anterior e também aqui: "imbecil, tendencioso, desnecessário, piada, bobagem, partidário, esquerdopata (normal e iludido), sem formação, deplorável, politiqueiro, desserviço, ridículo, bosta (grande e normal), ignorância (normal e santa), petralha, safado, lamentável, vergonha (alheia e normal), besteirol, ideológico, inacreditável, sensacionalista, lixo, militante (normal e travestido de educador), preconceituoso, péssimo, decepção, chato, fraco, mortadela, bocó, lacrado (não sabia que era xingamento), robô, doentio, demente, canalha, merda, pseudo-intelectual, distorcido, ultrapassado, idiotizado, manipulador, ratiada (brincadeirinha com meu sobrenome), mimimi, perpetuação da burrice, vagabundo de DCE, consumidor de maconha (normal e estragada), arrombado, porcaria, tosco, borra-botas".

Se você buscar por meu nome no Google, verá que até hoje um dos artigos críticos é um dos primeiros a aparecer no mecanismo de buscas. O assassinato de reputações é organizado: quem opera sem travas morais domina numérica e tecnicamente o ambiente virtual. Também é sexy: tretas e xingamentos dão audiência e exigem resposta sempre um tom acima.

Quem se queixa ou se recusa a participar desse circo é rotulado como covarde. "Quanto mimimi", "não aguenta não desce para o play" e "aceita que dói menos", frase que pode — com razão — ser entendida como um deboche do estupro. Ouvi e ouço tudo isso, pois hoje xingar virou moeda corrente. Não digo isso para me vitimizar (outra coisa de que somos sempre acusados). Ao contrário: meu exemplo é insignificante perto do sofrimento de outros. Se tenho alguma notoriedade, certamente não estou nos holofotes ou na linha de frente a ponto de receber a enxurrada mais violenta de que determinadas figuras são alvo.

É o caso de Jean Wyllys. O jornal O Globo revelou que o ex-parlamentar convivia com ameaças semanais de morte, com detalhes apavorantes: "Vou te matar com explosivos", "já pensou em ver seus familiares estuprados e sem cabeça?", "vou quebrar seu pescoço", "aquelas câmeras de segurança que você colocou não fazem diferença". Mesmo depois de sua renúncia, as intimidações continuaram: "Saiba que meu maior desejo é te decapitar e postar o vídeo na Deepweb. Você e sua querida mãe", relatou novamente O Globo na semana passada. 

Quem em sã consciência não desistiria ao ouvir esse tipo de coisa? Quem não se comoveria com a dor do outro? As respostas parecem óbvias, mas sempre é possível descer um degrau a mais rumo aos porões da desumanização. O presidente publica no Twitter uma mensagem dúbia o suficiente ("um grande dia!") para merecer um desmentido protocolar de que ele não estaria se referindo à renúncia do deputado do PSOL. Notícias falsas passaram a associar a desistência de Jean à hipótese bizarra de ele ser o mandante da facada em Bolsonaro. Consigo claramente enxergar uma situação de esgotamento mental em que jogar tudo para o ar parece a única solução.

E assim vamos seguindo. A falta de empatia vem de cima e dos lados. E está vencendo. Goste-se do que Jean defendia ou não, ele jamais merecia ser silenciado. Mais uma jovem liderança sai da arena. Quantas outras, menos célebres, também acabam optando por bater em retirada? Ao imaginário popular que vê a política como corrupção, acrescenta-se uma camada bastante real de ameaças que podem acabar com a vida das pessoas. Nesse contexto, quem é louco de querer fazer política? O Brasil se odeia. Estamos construindo um país doente.

Sobre o autor

Rodrigo Ratier é jornalista, professor universitário, pai de duas, curioso pela vida, entusiasta do contraditório

Sobre o blog

Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente

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