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Em Desconstrução

Por que ainda há xingamentos homofóbicos nos jogos do São Paulo?

Universa

29/01/2019 04h00

O jogo de futebol precisa ser essa aula de homofobia? (Foto: Rodrigo Ratier)

– Vai se foder, sua bicha!

– Não é fácil jogar contra gazela.

– Ô Pablo Vittar [o centroavante do São Paulo se chama Pablo], você é viado!

– Pede o WhatsApp do juiz, seu gay!

– Pau nele que ele gosta!

– Vai jogar vôlei, arrombado!

Não sou um torcedor superassíduo, mas tenho lá minha cota de jogos – uns 10 por ano, em média. Há muito tempo não assistia a um Santos e São Paulo. Não sabia a quantas andava a temperatura da torcida quando o adversário era o clube do Morumbi, o mais visado quando o assunto é homofobia.

A temperatura… bem, uma amostra não exaustiva é a coletânea de elogios que abrem esse texto. Durante 90 e poucos minutos, o Pacaembu me teletransportou para a quinta série, nos longínquos anos 1980. Que é, basicamente, para onde nosso país tem caminhado nos dias de hoje.

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O palavrão tem nos estados de futebol um lugar cativo. Mas o tipo de xingamento muda quando o adversário é o time do Morumbi. O grito de "bicha" no tiro de meta, que chegou quase a desaparecer de nossa torcida no ano passado, voltou a ser entoado a plenos pulmões no clássico do domingo.

Algumas coisas me vêm à mente.

Primeiro, vão dizer que o mundo está chato, que não se pode falar mais nada, que tudo é brincadeira. A libertação do politicamente correto é, como se sabe, programa presidencial, prioritário ao ponto de ser mencionada nos dois discursos inaugurais.

Diz o professor Reinaldo Zanardi, da Universidade Estadual de Londrina: "O politicamente correto nasceu para defender, principalmente, os segmentos vulneráveis e se espalhou, com o tempo, para todas as áreas da sociedade."

Continua o professor, que prepara tese de doutorado sobre o tema: "Ser politicamente correto, hoje, é tratar com respeito, por exemplo, cadeirantes, idosos, cegos, surdos, quem tem síndrome de down, gays, lésbicas, transexuais, indígenas, negros, mas também é politicamente correto respeitar leis de trânsito, ter uma atitude responsável com o meio ambiente, respeitar a diversidade religiosa, cultural, regional, entre outros."

O politicamente correto, assim, está ligado à progressiva civilização. A palavra descreve e constrói o mundo. Se quisermos que o mundo mude, precisamos mudar também a forma como nos comunicamos. Não seria o caso de reforçar o politicamente correto em vez de defender sua supressão?

O segundo ponto é o porquê do palavrão homofóbico. Como é possível, por exemplo, que a palavra "gay" seja usada para ofender? O que é essa necessidade, do ponto de vista do ofensor, de afirmar a masculinidade, ao ponto de estereotipar um time inteiro?

Nesses aspectos, temos muito a aprender com os mais jovens. Tenho a sorte de lecionar numa faculdade com excelentes frentes feministas e LGBTs. Aprendo muito com os relatos e as reflexões desses coletivos. Seu olhar mais generoso e tolerante com as questões de sexualidade e gênero me ajuda, também, a ser mais generoso e tolerante comigo e com os outros.

Não digo isso como autoelogio – como disse, tenho uma série de questões com outros palavrões que talvez eu precise trabalhar –, mas para sugerir que esse contato com a moçada poderia fazer um bem danado. Para mim, que nasci na década de 1970 – também entendi que isso não é desculpa –, ficou impossível qualquer tipo de homofobia, mesmo que isso viesse travestido de brincadeira.

Às vezes parece que estamos andando para trás. Vale não se deixar paralisar por essa sensação: a sociedade não se transforma de maneira automática nem linear. Há avanços e recuos, sobretudo muita luta. A ressaca é grande, mas o contato com a nova geração nos deixa a esperança – não a certeza, mas a esperança – de que a torcida contra o tricolor vai ser diferente no futuro.

 

Sobre o autor

Rodrigo Ratier é jornalista, professor universitário, pai de duas, curioso pela vida, entusiasta do contraditório

Sobre o blog

Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente

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