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Em Desconstrução

Quem deixa filhos por 12 horas no shopping precisa repensar a paternidade

Rodrigo Ratier

16/01/2019 17h31

(Crédito: Pixabay)

Atualizado às 14h31 de 19 de janeiro.

Pula-pula, piscina de bolinhas, escorregadores, carrinhos de pedal e por controle remoto, videogames e o cantinho do famigerado slime. As megabrinquedotecas em shopping são o espaço da moda, pelo menos para quem tem filhos pequenos. Numa delas, comprando um passe por 99 reais, ganha-se acesso ilimitado para uma criança durante um mês. Se o pequeno em questão tiver um irmão ou irmã, a proposta é ainda mais atraente: o segundo passaporte mensal, igualmente ilimitado, sai por 49 reais.

Levei minha filha menor a um desses lugares – como ela recém completou 1 ano, o pai precisa estar junto. Ficamos quase uma hora, o que me pareceu uma troca justa: em seguida, ela me acompanharia por um tempo equivalente nos corredores de um supermercado. Enquanto Clara parecia se divertir, eu contava os minutos para ir embora. A tal superbrinquedoteca me pareceu um lugar um estressante. Música alta (Xuxa. Ainda ouvem Xuxa hoje em dia?), a luz branca típica de espaços fechados e crianças correndo sem parar.

Fiquei na bronca com uma dupla mais agitada que quase pisoteou a pequena. Ambos meninos, talvez com 8 e 10 anos, não mais do que isso. Achei estranho que todos os recreadores já os conhecessem, a ponto de chamá-los pelo nome:

— Rubens (nome fictício), cuidado com os menorzinhos! João (também inventado), chega de videogame! Lembra o que aconteceu da última vez?

Pergunto a alguém da equipe o porquê de tanta familiaridade. Recebi a descrição da rotina dos dois:

— Eles vêm aqui todo dia. Chegam quando o shopping abre, às 10 da manhã. Vão embora quando o shopping fecha, às 10 da noite.

— E comem o quê esse tempo todo?

— Pipoca. É de graça. Se estão com sede, tomam água. Quando estão com fome de verdade, pedem para a gente ligar para os pais. Aí aparece alguém e compra um lanche. Na praça de alimentação, é claro.

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Paternidade é uma coisa complicada que a gente deve evitar julgar. Principalmente nas férias: um amigo brinca que tem 10 meses de folga por ano e que trabalha de verdade nos 60 dias em que a escola dos filhos está fechada. Mas, se confiarmos no relato dos recreadores, no caso de Rubens e João não há margem para dúvida: é simplesmente errado deixar duas crianças num shopping durante doze horas. Se alguém decidisse chamar o Conselho Tutelar, não me pareceria descabido.

Do ponto de vista financeiro, é um negócio da China: acesso livre por 30 dias por apenas 99 reais. Um curso de verão numa escola particular começa na faixa dos 100 reais diários. Caso sejam irmãos com o benefício do "combo", Rubens e João custaram menos de 7,50 por dia útil aos pais. Será que foi esse o raciocínio que motivou a escolha?

Consigo entender que a vida dos adultos não para durante as férias. Mas… por doze horas diárias? O que de tão importante pode estar acontecendo nesse período? Existe o trabalho, existe a luta pela sobrevivência. Mas filhos exigem que, de alguma forma, busquemos o equilíbrio entre a vida pessoal e a profissional. Meio dia no shopping indica que tem algo de errado aí.

Há talvez um sintoma de desagregação social. "É preciso uma vila para criar uma criança", diz o provérbio, indicando que a responsabilidade não precisa, necessariamente, estar apenas nas costas dos pais. Há, ou deveria haver, sempre uma avó ou avô, tia ou tio, vizinha ou amigo disponível para ajudar – sou grato à minha mãe e à minha sogra que dão mais do que uma força com as meninas.

Dá para pensar também numa visão antiga, a de que as crianças só precisam de um cantinho para ficar enquanto os pais trabalham. Essa era a ideia que animou por muito tempo, as creches públicas e particulares. Hoje sabe-se que essa noção é falsa: crianças são seres que aprendem desde cedo – especialmente desde cedo – e que precisam ter as oportunidades para desenvolver suas habilidades e conhecer o mundo. Em resumo: devem estar no universo da educação, e não em um depósito de passatempo.

Ou, quem sabe, a justificativa seja outra: "é bom que meus filhos fiquem num lugar divertido". Antes de tudo, é possível questionar o quanto um caixote com luz fria, sem janelas e música infantil em alto volume é, de fato, divertido. Mas, principalmente, deve-se lembrar que as crianças não precisam se divertir o tempo todo. Uma tarde modorrenta em casa pode ser um importante disparador de criatividade. Muitas vezes, o tédio também está a serviço da aprendizagem.

Doze horas no shopping… São tantos senões que, no fim das contas, a pergunta que precisa ser feita é a seguinte: se é para cuidar dos filhos dessa maneira, vale a pena tê-los?

Sobre o autor

Rodrigo Ratier é jornalista, professor universitário, pai de duas, curioso pela vida, entusiasta do contraditório

Sobre o blog

Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente

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