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Em Desconstrução

Só o acaso separa nossos filhos das crianças que trabalham e pedem esmola

Rodrigo Ratier

17/12/2018 12h39

(Crédito: Rodrigo Ratier)

Parecia inteligentíssima. Ouviu-nos conversando em português e se acercou dizendo "bambino, bambino", intuindo que falávamos algo próximo do italiano. Eu disse: "não somos italianos, somos brasileiros", e ela fez sinal afirmativo com a cabeça repetindo "euro, euro". Tinha no máximo 10 anos. Magra, descalça e suja, vestia um traje indiano amarelo igualmente imundo. Era acompanhada por uma menina um pouco menor, de rosa e nas mesmas condições. Seguindo-nos enquanto contornávamos a Jama Masjid, principal mesquita de Nova Délhi, repetia o gesto de levar os dedos unidos à boca, pedindo: "papa, papa". A caçada durou duzentos metros em meio à multidão do centro antigo da capital da Índia. A pequena venceu pela insistência. Se deu por satisfeita ao dividir com a amiga uma nota de 100 rúpias, pouco menos de 6 reais.

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(Crédito: Rodrigo Ratier)

Principal cartão postal de Nova Délhi, o Forte Vermelho é uma gigantesca construção de 11 palácios erguida no século 17 pelo Império Mogul, que dominou o subcontinente indiano por mais de 300 anos. Em 2007, o monumento foi declarado patrimônio da humanidade pela Unesco. Os trabalhos de conservação vão da jardinagem à troca do piso, e envolvem diversas equipes. São tarefas pesadas. É preciso revolver a terra, carregar areia e cimento, transportar pedras. Tudo é feito manualmente pelos trabalhadores, que usam suas roupas do dia a dia nas tarefas. Há homens, mulheres e crianças. O trabalho infantil é proibido na Índia, mas muitas crianças são levadas pelos pais por não terem com quem deixá-las. Acabam pegando no batente. Não muito distante da rota turística, um menino de 8, talvez 9 anos, maneja uma picareta junto de um grupo de adultos. É possível registrar a cena pelo zoom do celular.

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(Crédito: Rodrigo Ratier)

"Não pode ser aqui", comenta, incrédula, a jornalista de Lesoto, ao avistar o edifício malcuidado num terreno empoeirado e cheio de entulho. Num bairro de gentrificação meio capenga no sul de Nova Délhi, nosso grupo internacional de jornalistas caminha assustado em direção a um espaço de coworking, que se revelaria cool e descolado como seus equivalentes ocidentais. Antes de chegar à terra hipster prometida, era preciso enfrentar a vida real. A menina de nariz escorrendo se aproxima mirando as mulheres do grupo, que são maioria. Não pede, chora. Não interpela, toca nas pessoas com desespero, puxa suas roupas. Nenhum de nós entende exatamente o que ela diz. Está claro que quer comida, dinheiro. O segurança age rápido: afasta a criança e faz sinal para entramos.

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Penso em minhas filhas. Levo da Índia alguns presentes para elas. Custaram 30 notas de 100 rúpias.

Penso no Brasil. A Índia é aqui e não é aqui.

Penso na criança que fui e no que me separa das crianças que pedem esmola, trabalham ou choram nas ruas de Nova Délhi, Mumbai, São Paulo ou Rio. Impossível atribuir tamanho abismo ao esforço, talento ou mérito. Num enorme sentido, foi pura sorte, um bilhete premiado na loteria do nascimento que me pôs numa casa brasileira de classe média e não num cortiço insalubre da capital indiana ou numa favela em qualquer área metropolitana do Brasil.

Me rendo ao acaso, sinto culpa até me ocupar com outro pensamento. No terraço do cinco estrelas onde estamos hospedados, é hora do coquetel de boas-vindas. Naquela noite de dezembro fez oito graus na capital da Índia. Diante do hotel de muros altos protegidos por guardas, pessoas dormiam ao relento. Não sei se havia crianças.

O autor viajou à Índia para a cobertura do Partners Forum 2018, com custos pagos pelo PMNCH no programa de bolsas do Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ).

Sobre o autor

Rodrigo Ratier é jornalista, professor universitário, pai de duas, curioso pela vida, entusiasta do contraditório

Sobre o blog

Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente

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