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Em Desconstrução

"Na minha época, todo mundo estudava": o delírio dos novos poderosos é fake

Rodrigo Ratier

29/11/2018 16h53

(Crédito: Jerzy Müller/Freeimages)

"Vai longe a lembrança", diz o manifesto O Brasil para os Brasileiros, de autoria do bloco conhecido como bancada evangélica, "em que a quase totalidade dos estudantes estavam na escola pública e ela era para todos e tinha a confiança de todos que cumpria seu papel: proporcionar uma educação de qualidade aos seus alunos". Na memória bucólica dos parlamentares, houve um tempo em que as crianças sonhavam em ser professores, havia deferência aos docentes e orgulho geral em torno da escola.

A lembrança vai longe mesmo. Mais precisamente, para o tempo do nunca. Não houve, em qualquer momento da história do país, um cenário como o descrito pelo grupo de deputados e senadores. A educação brasileira jamais conseguiu conjugar atendimento universal e qualidade.

"Mentira!", grita um indignado. "Na minha época, todo mundo aprendia". Sejamos precisos: em qual época? Anos 1950? Só 26% das crianças e jovens entre 5 e 19 anos estava na escola. Algo como 14 milhões estavam fora, segundo o IBGE. A dourada década de 1960? A taxa de atendimento subiu para 33%. Mas, por causa do crescimento populacional, o número absoluto de excluídos chegou a 17 milhões. Os loucos anos 1970? Pela primeira vez, mais da metade (54%) estava dentro das salas de aula. Mas 16 milhões ainda não frequentavam os bancos escolares.

A universalização do ensino – sendo benevolente e entendendo "universal" como uma cobertura superior a 95% no Ensino Fundamental – só veio na virada para o século 21. Mesmo período em que começam a se popularizar os indicadores de qualidade (antes deles, não havia como afirmar, concretamente, se o ensino das escolas era bom ou ruim). Construídos a partir das taxas de aprovação e das notas em avaliações externas, os números atestam o que já se intuía: aprende-se pouco nas escolas brasileiras.

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Mesmo assim, projeta-se um passado mítico como modelo. O exemplo da educação e da bancada evangélica está mais para regra do que exceção. Virou moda empunhar bandeiras meio emboloradas, em que se pinta um "tempo bom que não volta mais", e dizer que é para lá que devemos seguir.

"Retomar a lei e a ordem". "Reestabelecer o respeito na família". A estratégia de vender o passado como futuro tem dado certo. Foi o principal slogan da vitória de Donald Trump. Make America Great Again, tornar a América grande novamente. Numa época de tanto apelo pela inovação, parece estranho que defender uma volta atrás possa fazer sucesso. Qual o segredo?

Figura central no pensamento da pós-modernidade, Zygmunt Bauman (1925-2017) examinou esse fenômeno em seu último livro, Retrotopia. Para o sociólogo e filósofo polonês, as promessas de um amanhã melhor, mais seguro e mais livre – numa palavra, as utopias –, fracassaram. Algo deu errado e o ser humano contemporâneo se encontra preso num mundo distópico, em que a realidade foge do controle e o mundo criado se volta contra seu criador. O mal-estar sobressai. A repulsa à globalização, a aversão a "tudo isso que está aí" e, mais recentemente, o combate ao "globalismo" (suposta "dominação cultural marxista", seja lá o que isso signifique) são sintomas dessa inquietação.

Se o presente é ruim e não adianta sonhar com o futuro, o escape inevitável é viajar para o passado. Um sonho velho tem vantagens. A primeira e principal seria uma espécie de prova de existência: estamos falando de algo que pretensamente aconteceu. Ao contrário da utopia, uma projeção futura que pode ser apenas uma ilusão.

Outra anabolizante da nostalgia é a distância histórica. Temos uma certa tendência a enxergar o passado mais verde do que ele realmente foi. Daquela viagem à praia em que você dormiu mal num quarto que parecia um microondas e foi devorado por borrachudos sobraram apenas as idílicas imagens do mar azul. E a vontade: "quero ir de novo".

Há, por fim, a aposta em um passado indefinido. Qualquer menção mais específica é riscada do discurso e isso não é à toa: o relembrar de uma situação concreta traz à superfície todas as dificuldades que a marcaram. Resguardar-se num plano geral, por outro lado, permite planar numa abstração que nunca aterrissa e, por isso, é sempre perfeita.

A promessa maior da retrotopia repousa na segurança. Em nome desse valor, aceitamos abrir mão da essência da modernidade, o livre arbítrio. A proteção implica a transferência do poder ao homem forte e eles pululam por aí: Trump nos EUA, Orban na Hungria, Duterte nas Filipinas, Bolsonaro por aqui. Competentes comerciantes de uma utopia alquebrada, frustrante e desesperançada, pavoneiam nossa incapacidade em construir um mundo melhor. Mirar uma ilusão passada é o máximo que podemos conseguir, é melhor já ir se acostumando.  

São tristes os tempos em que o imaginário dominante é uma imagem tão mofada quanto falsa, em que o máximo que se pode aspirar é o retorno a uma situação que nunca ocorreu. No mundo dos novos poderosos, o que resta do futuro é uma farsa em repetição infinita.

(Devo ao excelente TCC "Donald Trump: a redenção pelo regresso", do jornalista Rafael Burgos, a inspiração para este texto. Os eventuais equívocos, evidentemente, são minha responsabilidade).

Sobre o autor

Rodrigo Ratier é jornalista, professor universitário, pai de duas, curioso pela vida, entusiasta do contraditório

Sobre o blog

Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente

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