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Em Desconstrução

Uma mulher de 3 anos é a nova dona da minha casa

Rodrigo Ratier

20/07/2018 22h12

Crédito: Roxinasz/Freeimages

– Papai, quero suco – anuncia uma vozinha esganiçada na outra ponta do corredor.

– Tá em cima da mesa, filha, pode pegar – replico, aguardando os tradicionais protestos de "não consigo". Não posso ser interrompido, estou em atividade relevante (no banheiro, lendo jornal).

Em vez do muxoxo, silêncio. Para quem tem filhos, a ausência de som é um indício mais preocupante de que um urro de dor. Entre contrariado e aflito, faço cessar minha importante tarefa a tempo de ver a pequena em escalada de descida pela cadeira, embalagem longa-vida de gominhos na mão.

O que se segue contou com certa coadjuvação de minha parte, mas para efeitos dramáticos fica combinado que ela fez tudo sozinha. Desrosqueia a tampa da caixa, verte o suco na peneira, coa o conteúdo (ela não gosta de gominhos), sorve o líquido. "Quero mais", o que na verdade é um pedido retórico, pois ela já é capaz de se servir.

Então assim é crescer? Não foi num piscar de olhos – são três anos de idade, afinal – mas foi rápido. E é gostoso de ver. Empoderada, como se diz hoje em dia, abre a geladeira e indaga sobre o paradeiro do requeijão. Escuta o interfone, disca o 9 e pergunta quem é. "Pode deixar a vovó subir", sentencia. Dedilha dois, quatro, cinco, nove e pronto, era uma vez a trava do Ipad. Indigna-se com a TV no futebol e pede desenho. Discutimos e precisamos da arbitragem de um adulto responsável, minha esposa, mãe dela. A sororidade fala mais alto e logo estamos condenados a Super Wings, Mini Beat Power Rockers ou outro desenho chatinho-não-Peppa na Discovery Kids. A democracia é desafiante, fecho os olhos em exasperação e percebo um zapping para o Disney Channel. Ela aprendeu a usar o controle remoto também.

Crianças são um vir a ser, mas também já estão sendo. Possuem direitos (muitos!) e deveres (uns quatro). Ocupam espaço, estabelecem relações sociais, possuem vontades e desejos. Ajudá-los a encontrar o equilíbrio entre os que podem ser satisfeitos agora, aqueles que talvez possam em outro momento e os que nunca serão é, acho, nossa principal tarefa com parceiros mais experientes nessa bagunça que chamamos de vida. Quero ser um companheiro dela na caminhada.

Ainda não me acostumei com minha filha como dona da casa. Também não me acostumei à forma como ela identifica esse companheiro aqui. Toda vez que a vozinha esganiçada diz "papai", demoro um instantinho para entender com quem ela está falando. Me dou conta que é comigo e me sinto feliz.

Sobre o autor

Rodrigo Ratier é jornalista, professor universitário, pai de duas, curioso pela vida, entusiasta do contraditório

Sobre o blog

Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente

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