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Em Desconstrução

A cicatriz do ano em que teve Copa, mas acabou o país

Rodrigo Ratier

21/06/2018 10h47

(Crédito: Rodrigo Ratier)

Houve aquele Copa, houve junho de 2014. Olhando para trás, identifico nele o último momento em que o brasileiro foi algo feliz como povo. Era uma imagem que já se esvaia, mas ainda parecíamos acreditar em nossa capacidade de dar o salto rumo ao desenvolvimento, de tirar do papel coisas grandiosas e úteis, de construir uma nação mais inclusiva e lógica, generosa e racional.

Era uma miragem, hoje sabemos, que havia começado a desaparecer um ano antes, no confuso e febril junho de 2013. Foi apagada de vez em abril de 2016, com a ascensão ao poder do presidente mais impopular da história do país. Entre um ponto e outro, houve o 7 a 1, presidente sendo xingada em estádio, depois nas ruas, petralhas versus coxinhas, o impeachment, ódio nas redes, crise e desemprego. Daquele tempo, sobraram as cicatrizes. Algumas simbólicas, outras concretas e visíveis.

Como a aberta em Cuiabá, capital do Mato Grosso.

Vinte e dois quilômetros de extensão, 33 estações, custo estimado de 1,4 bilhão de reais, mobilidade para uma cidade inteira. Só que não. Como o Brasil sacolejado pela Alemanha, o Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) de Cuiabá também ficou pelo caminho. Em 2018, a obra prevista para facilitar os deslocamentos durante a Copa do Mundo – do Brasil, quatro anos atrás – está parada.

A extremidade próxima ao aeroporto é a que tem mais jeito de — muitas aspas — "estar perto de ser concluída". Começa com uma estação coberta em que faltam acabamentos. Conforme a linha avança, o VLT vai se despindo. Vão-se as coberturas na estação, os postes que levariam a eletricidade, o concreto que protege os trilhos, vão-se os próprios trilhos e, por fim, o terreno que receberia a obra. Em alguns trechos, já há grama plantada na área destinada aos trens. Há também 42 vagões em deterioração no Centro de Controle Operacional e Manutenção.

Aconteceu o que sempre acontece. Apenas 25% do trajeto foi concluído, mas já foram torrados 75% do orçamento original. O contrato, firmado em 2012, foi rescindido no ano passado depois que a Polícia Federal apontou fraudes. Nome da investigação: Operação Descarrilho. Até que venha uma nova licitação, tudo segue parado. O valor dos trabalhos, claro, será recalculado.

(O detalhe é que daria para fazer a mesma obra com ônibus de trânsito rápido por um terço do valor original).

Existe diferença entre abandonar e desistir. Desistir, a meu ver, é uma decisão racional. Significa abrir mão de uma meta ou projeto depois de refletir e avaliar: "isso não é para mim, não tenho condições, já não faz mais sentido". É uma atitude respeitável para corrigir a rota e seguir a vida adiante, pondo energia em outra parte.

Abandonar, por outro lado, é largar no meio. Seguimos presos à iniciativa inconclusa porque não nos livramos dela. O canteiro de obras inacabadas é um de seus símbolos eloquentes. Sua persistência a nosso lado, todo dia a caminho do trabalho, da escola, de casa, é um dia da marmota que zomba de nossa preguiça, ingenuidade e incompetência. É uma cicatriz que nos lembra do que perdemos há não muito tempo, do que poderíamos ter sido e não somos.

O que aconteceu em Cuiabá é mais regra do que exceção. Aconteceu com o monotrilho em São Paulo, aconteceu com obras de mobilidade em quase todas as sedes e aconteceu nos estádios subocupados em Brasília, Natal, Manaus e Recife. São, portanto, muitas cicatrizes, que em conjunto evocam a hipótese de termos abandonado, no fim das contas, o próprio país. Que segue a nosso lado, incômodo e inconcluso, esperando que um dia resolvamos enfim tirá-lo do papel.

Este é um texto da recém-inaugurada série "Imagens que Explicam o Brasil". Confira outros aqui.

 

Sobre o autor

Rodrigo Ratier é jornalista, professor universitário, pai de duas, curioso pela vida, entusiasta do contraditório

Sobre o blog

Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente

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