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Em Desconstrução

Elogio aos pais insones

Rodrigo Ratier

12/04/2018 17h25

Dorme, filha, já é tão tarde. A noite é feita pra descansar. A mamãe? Não, querida, infelizmente ela não está disponível no momento. Olha ali, apagou no sofá. Normal. Um nenezinho de poucos meses é muito demandante. Agora só sobrou eu. Eu, quem? Seu pai. Você me conhece, fico ali na retaguarda. Lavo roupa – mentira, só ponho pra lavar –, lavo louça – mentira, idem –, arrumo cama, faço compras, essas bobagens. Estamos aí, pode me considerar um regra-três de segunda classe.

Estagiário? Mais respeito com os estagiários! Mas, hum, é tipo isso. Ou empregado intermitente, prestador de serviço. A reforma trabalhista criou umas novas modalidades contratuais. Comigo você tem quase todos os direitos do original, exceto por uma ou outra coisinha. Leite, por exemplo, é melhor você ver com a mamãe. Sei, os peitos dela estão rachados. É, também a vi chorando de dor. Sim, ela te carregou por nove meses, ficou enjoada, com as pernas inchadas. Verdade, o parto… peraí, quem te contou do parto? Se eu acho justo? Filha, vamos mudar de assunto?

Também cuido da sua irmã. Tenho cuidado bastante desde que você nasceu. Andamos de patinete, jogamos bola, brincamos de casinha. Sou a Anna da Frozen, a Suzy da Peppa, seu primo Bernardo e a amiga Marina. Você vai conhecer esse povo todo. Sem pressa. Por enquanto, concentre-se em dormir. Sua mãe tem uma expressão bonita: procura o sono. Fecha os olhinhos. Eu espero. Não? Prefere deixá-los abertos?

Tá bem. Vamos passear pelo apartamento. O melhor jeito é eu te levar de turista. Te viro de frente para o ambiente, com as costas apoiadas no meu peito e segurando suas pernas como uma cadeirinha. Tô falando esquisito? É que eu tô explicando para o pessoal. Vai que alguém acha útil. Preparada?

É um city tour compacto, filha. Aqui, seu quarto. Ótimo lugar para brincar no horário comercial. No momento as diversões estão guardadas. Sua irmã dorme. Essa tripa à frente é o corredor. Ali no fundo, o quarto da mamãe e do papai. Um giro rápido, se a senhorita me acompanhar, e chegamos à sala de jantar. À sua direita a cozinha, e ali adiante, depois da geladeira, a área de serviço. Eu disse que era compacto.

Também a varanda com vista. Não se empolgue que não é gourmet. Não costumamos cozinhar e, por Deus, não somos paneleiros. O que é aqui? Prédio. Ali? Prédio. No outro ali? Prédio. É nosso bairro, é a nossa São Paulo. Logo tudo isso também é seu. Mas por enquanto, como diz a mamãe, procura o sono. Isso, meu amor, dorme. O papai vai fazer o café para ir trabalhar.

Sobre o autor

Rodrigo Ratier é jornalista, professor universitário, pai de duas, curioso pela vida, entusiasta do contraditório

Sobre o blog

Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente

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