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Em Desconstrução

Palavrões podem ser positivos. E fofinhos

Rodrigo Ratier

09/03/2018 16h53

A pequenina se horrorizou quando solicitei que os jogadores fossem tomar caju na feira da fruta perto da casa do Carvalho

Ela se assustou e a culpa foi minha. A simpática menina da foto – tão pequena e já indo ao jogo do Santos, que maravilha! – arregalou os olhos e fez cara de pânico quando me ouviu comunicar, aos berros, algumas instruções aos protagonistas da partida. Proferi uma variada lista de incivilidades, descortesias e obscenidades relativas a nosso universo biofisicopsicossocial. Dei preferência a atos fisiológicos, notadamente a defecação. Na arquibancada verde do Pacaembu, a pequena estava sendo apresentada, por meu intermédio, a um festival de expressões linguísticas afrontosas aos bons costumes.

Não causei traumas. Minutos depois, a pequena se desinteressou do jogo e preferiu fazer qualquer coisa com o celular. Mesmo assim, pedi milhões de desculpas à mãe, que deu risada. Me envergonhei por automatismo, mas talvez não devesse. Adoro palavrões. Admiro seus divulgadores. De Dercy Gonçalves a Hermes e Renato, passando pela contribuição decisiva de Fausto Silva, que levou o eufemismo "orra" e o original com "p" às tardes da tradicional família brasileira. Em certas ocasiões, não há palavra melhor para expressar indignação, surpresa ou alegria. O palavrão é tão poderoso que não tem substituição. Faça o teste: se trocar por qualquer eufemismo ("chato!","feio!", "bobo!"), deixa de ser palavrão.

Como tudo na vida, é uma relação que vale a pena discutir. O avanço dos debates sobre gênero deixa claro que certos xingamentos são inaceitáveis. Chamar um homem de v. ou b. ou uma mulher de p. é simplesmente preconceituoso e discriminatório. O subtexto é que essas palavras denotariam um desvio moral. São louváveis os esforços de torcidas que querem banir o grito ofensivo quando o goleiro adversário cobra um tiro de meta. No jogo do Santos, ele infelizmente apareceu. Tímido, apenas aos 13 minutos do segundo tempo. Mas estava lá.

No geral, torço pela reabilitação dos palavrões. Peguemos, por exemplo, aquele monossílabo que rima com tabu. Em si, não é, ou não deveria ser, uma ofensa. Um tabu é um tabu, certo? Precisa de algum acréscimo para se tornar uma impolidez. Um verbo que indique sexualidade passiva ("tomar no", "enfiar no") ou o apelo a variados campos do saber prático: instruções de localização ("tomar no olho do", ou o detalhado "no MEIO do olho do"); unidades de medida ("dar meia hora, cinco minutos, quatro dias"); e rudimentos de zoologia ("dar para o cavalo, jumento, orangotango"). Também não entendo por que "tomar no tabu" precisa ser xingamento. Com o tom de voz certo, pode ser um convite interessante. Dizem.

E o que falar da palavra que lembra a árvore imponente, de tronco rijo e calibroso, o carvalho? Palavrão de responsa. Toda vez que ouço o ridículo "caraca", arremedo de sinônimo limpinho, me pergunto se estou num episódio de "Malhação". Ocorre que carvalho é mais uma vítima da sociedade. Virou xingamento por aludir a um objeto pendente em região baixa da anatomia masculina. Assim como sua contraparte feminina, que sonoramente lembra a palavra bicicleta. E o já mencionado tabu. Absurdo. Cada um tem o seu, cada uma tem a sua e ninguém tem nada com isso.

Mas o caso do carvalho é mais grave, já que a perseguição atingiu até suas condições habitacionais, maldosamente rotuladas como superlativo de distância. A inaceitável discriminação foi desmascarada, vejam só, por uma trupe de humoristas. Há mais de 20 anos, Casseta e Planeta mostraram, num esquete clássico, que mandar alguém para a casa do carvalho pode ser um excelente programa. Um repórter chega ao endereço indicado e lá está o dito-cujo, pulsando de alegria numa espreguiçadeira à beira da piscina, orgulhoso da pujança de sua mansão.

Vou além. Com algum espírito empreendedor, o palavrão pode ajudar o Brasil a sair da crise. Sugiro a campanha #vaipracasadocarvalho como forma de aquecer o turismo nacional. Para dar o exemplo, os primeiros viajantes poderiam ser os manda-chuvas do Governo Federal. Não seria o máximo?

Palavrões são injustiçados. Eles têm um lado bom, podem ser positivos e até fofinhos. É assim que gostaria de pensar com minha cabeça pseudo-desconstruída. Só que a verdade é que quando as minhas filhas falarem seu primeiro palavrão… aí vai ser foda.

Sobre o autor

Rodrigo Ratier é jornalista, professor universitário, pai de duas, curioso pela vida, entusiasta do contraditório

Sobre o blog

Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente

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